quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

LATAN ZELIF

família querida, diferente, meio ausente, mas divertida,
como o natal é tempo de tradição, não cabe inovação,
daí, desejo a todos, nesse dia, paz, saúde e harmonia,
que a imensa e suprema felicidade invada a sua cidade,
que as pessoas sejam solidárias com aquelas solitárias,
e me refiro à solidão, não aos problemas de digestão
trazidos pela rabanada, tender, maionese e bacalhoada,
castanhas, nozes, panetones e frutas de todos os nomes,
tudo consumido com moderação e prioridade à direção,
pois o ano que se inicia há de trazer conquistas e alegria,
chega de tremores, alergias, febre, tontura e taquicardia,
asma, reumatismo, bronquite, enxaquecas e sinusites,
saúde às crianças, adultos e anciãs, já que recorri aos titãs,
que seja hoje o futuro, para experientes, jovens e imaturos,
cada um, com paciência e jeito, entenda e preserve o respeito,
deixe de lado o que incomoda e mostre ao mundo como é foda.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

TARDE DE SÁBADO


Assim que o carro diminuiu a velocidade e lhes cedeu passagem, elas atravessaram e lançaram discretos sorrisos de agradecimento ao casal, que se beijava e as cumprimentava, de volta, em rítmica sincronia facial. A tarde quente de outono derramava preguiça, alegria e cumplicidade, sentimentos de prazer indescritível e inerentes às viagens de direito e de fato. A calçada estreita e desnivelada dificultava a caminhada mas as mantinha próximas, como sempre foram. De mãos dadas, agora iam em direção ao ateliê do artesão indicado e que prometera recuperar o precioso anel, que soltara a esmeralda ao cair no piso cimentado da sala de costura. Ansiosa, Neuza contava os minutos para ver a peça reparada, herança da avó materna a que teve direito pelos poucos minutos de vida à frente de Norma, irmã dileta e companheira de vida em comum. Embora saudáveis, vistosas e independentes, a sorte no amor não as agraciara até então. Movidas ansiosamente pelos instintos maternais, cederam ao insistente aconselhamento da prima. Então, viajaram de surpresa com o propósito de conhecer e agradecer à bendita jovem que lhes prometera entregar o filho, que nasceria em seis semanas. Sem saber da visita, Glória viajara para a capital, em busca dos medicamentos caros e raros, distribuídos sem custo, para aliviar os males da bursite que a afligia nas frias noites da pequena cidade natal. Como o ateliê estava fechado, resolveram fazer um lanche no café da praça. Pediram torta de maçã com cobertura de canela, acompanhada de café espresso. Enquanto conversavam, reconheceram o casal do carro sentado ao fundo da cafeteria. Trocaram breve aceno de cabeça e notaram que havia coincidência na escolha do pedido. Cozinheiras de mão cheia, ficaram impressionadas com a textura da torta, recomendada pela prima há bastante tempo. Impossível não notar, também, o carinho com que os dois se tratavam. 'Aposto que estão em lua de mel', Norma falou ao ouvido da irmã, que sorria e concordava com a cabeça. Há muito precisavam mudar os afazeres rotineiros e se distrair um pouco. A viagem de última hora, sem planejamento, havia sido uma ótima decisão, mesmo não conseguindo fazer tudo o que pretendiam. Pediram a conta, saíram e resolveram ligar para a prima, que lamentou não encontrá-las e as aconselhou a não visitar ainda a futura mãe biológica. Havia questões a serem conversadas pessoalmente. Sugeriu que esperassem um pouco para irem juntas e que contivessem a ansiedade, pois tudo aconteceria no ritmo natural das coisas. Como o ateliê continuava fechado, caminharam tranquilas, de mãos dadas, olhando as casinhas uniformes com janelas grandes em pintura escura e nova. A tarde caía e anunciava a noite fria de lua cheia, enquanto o ônibus deixava a estação. Daquele ponto em diante, tudo ficava por conta dos aromas dos jantares e das conversas nas calçadas que inundavam de emoção os lares daquela cidade do interior.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

MONTANHAS-RUSSAS

Manutenção. Era a palavra chave. Eram da manutenção e podiam andar nas montanhas-russas sem bilhetes, sem filas, quando e quantas vezes quisessem. Valendo-se de argumentações relacionadas a questões de segurança ou parametrização de novas tecnologias podiam interromper passeios, pedir que usuários saíssem, tomar os assentos e se divertirem, quebrando recordes de voltas e malabarismos diários . Eram muitas e diferentes e perigosas e surpreendentes aquelas máquinas de iludir e brincar com o medo e de aflorar as emoções. Algumas, antigas, de madeira branca, estalavam e rangiam na subida, não eram muito altas e a velocidade não os assustava, mas o passeio demorava, o vento lambia seus rostos e os levava a lugares imaginários, onde eram felizes e o mal não se instalava. Davam-se as mãos, olhavam-se e riam do sobe e desce, do frio na barriga, do pânico e do prazer, desde o fim até o começo de tudo aquilo que podiam repetir e corrigir e desfrutar. Mas havia outras, novas, curtas e rápidas, feitas de material leve e resistente, que traziam tanto medo quanto sedução e o lançar-se de imediato era inevitável, sem questionamentos prévios e sem conhecimentos de causa e efeito. Tudo em nome do novo, do intenso, em direção ao futuro, à luz no fim do túnel que dava para o infinito. Em meio a tanta velocidade e mudanças de rota, experimentavam sensações extremas e viciantes, daí o fôlego faltava e as reações eram imprevisíveis. Não havia como voltar aos cartesianos lugares de segurança e às armadilhas da imobilidade. Gostavam das rotas de abismos e despenhadeiros do azul do céu a misturar-se ao verde das copas das árvores e ao marrom do chão. No começo, assustavam-se com as próprias reações de que tudo se perderia em meio ao caos e às desconstruções de seus altares invioláveis de segurança. Pesava certa sensação de inércia motivada por tristeza de abandonos e destratos insistentes de um passado recente. Mas quando o carro desacelarava e a estação aparecia, entendiam que o mergulho fôra seguro e importante, que as sensações novas incorporavam-se aos seus cadernos de viagens e já faziam parte de suas histórias imponderáveis de manhãs seguintes. Durante os mergulhos inesperados e intensos, por vezes os dois se assustavam e achavam que não conseguiriam segurar a onda, mas a cada vez que superavam obstáculos e corrigiam rotas sentiam-se mais fortalecidos, confiantes e a felicidade oxigenava seus pulmões, enchia suas mentes, brilhava em seus olhos e inundava-lhes os corações. Reservados, guardavam esses intensos momentos de felicidade para si. Nada havia a esconder, tampouco a divulgar ou dividir à revelia, aos quatro ventos. Tudo no ritmo natural das coisas. Sabiam que, arma quente, a felicidade vem e vai e fica e sai como as estações, como as folhas, como o que reluz e se apaga. Assim, ao final do dia, iam para suas casas, deitavam e ficavam repassando em câmera lenta os detalhes de tudo aquilo que acontecera, antes que se diluíssem e se apagassem de suas consciências. Depois, exaustos, felizes e já com saudade do que viria no dia seguinte, dormiam e sonhavam com lugares imaginários que eram a própria imitação de suas realidades. Eram da manutenção e podiam andar nas montanhas-russas quando e quantas vezes quisessem.

sexta-feira, 29 de março de 2013

A CHEGADA DO AMOR

Quando o amor apresentar-se no meio da madrugada,
dê-lhe atenção, cuide para que não escorra pelos dedos,
ofereça-lhe tempo, disponibilize-se, respire e o mereça,
guarde na caixa antiga de si mesmo as oportunas reservas,
os mais longínquos projetos de viagens, as melhores intenções.

Abstenha-se de dar-lhe ordens embaladas em papéis de sugestões,
seja-lhe audição para que se desmereça, deixe que desmorone,
que a tudo dificulte e assuste, eis que anseia lançar-se em mar revolto,
nada há de comum, conservador ou previsível nesse momento,
trate, portanto, de esvaziar-se e cuide de aprender tudo de novo.

Saiba que é permitido experimentar e sentir, mas não revelar,
o amor não quer ouvir, só precisa ser amado e surpreendido,
não o sufoque com cobranças, programações e compromissos,
deixe-o livre para que não lhe brote o pânico da não retribuição,
do desencanto e do sofrimento que sutilmente lhe ronda a alma.

O amor tem urgência diária de carinho, criatividade, humor e respeito,
tudo acrescido a doses precisas de ironia no jogo emocional da sedução,
daí, o não apontará para o seguir em frente e o sim a possíveis abismos,
quando o amor sentir-se confiante, confortável e pronto para instalar-se,
só então as tonalidades cinzas e negras cederão lugar ao vermelho.

quinta-feira, 21 de março de 2013

AUTOESTIMA X EGO

Altos e baixos. Subindo e descendo. Assim é o termômetro da vida, o eletrocardiograma que nos impulsiona e nos traz de volta, o tobogã dos parques temáticos que habitam nossa existência. Estamos sempre a questionar coisas e momentos que não se explicam, sem lógica, situações que acontecem de forma rápida e circunstancial. Ao acharmos que estamos no embarque de um trem a caminho de uma nova trilha, o fim se apresenta, nos decepciona, nos enche de tristeza e de inseguranças. Deparamo-nos com tantas situações complexas e singulares que espantam nossa mente e nosso coração, trazendo-nos angústia e sofrimento. Foram tantos os momentos de necessidade de recomposição mental e espiritual, verdadeiros labirintos de testes e provações, estrada íngrime com abismos e grutas escuras, que precisei entender e diferenciar autoestima de ego para acalmar minha alma e seguir em frente. Com frequência, confundimos essas sensações. Achamo-nos sozinhos, abandonados, ficamos sem referências, confusos. Autoestima é acreditarmos em nós mesmos, deixarmos a criança pura e boa que existe dentro de nós falar mais alto, sabermos que somos éticos, justos, bons e solidários. Não importa o que pensam de nós ou que aparentemente não sejamos competentes para demonstrar o nosso valor. O que conta é o nosso respirar, nossa emoção, nossos instintos naturais, nosso anjo da guarda a nos guiar pela floresta escura com tranquilidade e confiança. Ego é outra coisa, é a parte ruim, é a ansiedade, o medo, a fraqueza, o desequilíbrio. Ego é a busca de reconhecimento o tempo todo, querer ser elogiado, contentar-se com superficialidades que nos envaidecem e não nos engrandecem. Acho curioso e, às vezes engraçado, ouvir pessoas dizendo que receberam ou realizaram algo que 'fez bem para o ego delas', 'isso inflou meu ego', repetem, equivocadas. A mídia dedica um espaço enormemente ridículo às mediocridades de celebridades com suas imunidades e paredões que dividem o nada do nada. Grande parte dos órgãos de comunicação dita os conceitos, os modismos de forma irresponsável, mirando-se num espelho três por quatro de seu descompromisso e alienação para difundir uma imagem distorcida, despropositada de qualquer intenção cultural. Humildade, agradecimento, gentileza, tranquilidade são pontes que nos ajudam a fortalecer a autoestima. O ego nos confunde, nos limita, nos enfraquece, nos deprime e nos cega. O ego diz 'muito obrigado e faça o favor'. A autoestima diz 'muito agradecido e pode dar-me o prazer?'. A diferença é gritante. Por uma porta entram obrigações, favores, débitos, pendências. Por outra saem agradecimentos, prazeres, leveza, naturalidade. Como amante da língua portuguesa, adoro a palavra autoestima, composta pelas cinco vogais, que se entrelaçam e convivem com as consoantes para explicar quase tudo desse mundo mundo vasto mundo, que o poeta de Itabira falou.

domingo, 10 de março de 2013

TEMPO DE FALAR SOBRE O TEMPO – 38.45

Há muito queria escrever esta crônica sobre o tempo. Pacientemente, esperei o momento certo, fiquei ali sentado, dando um tempo, quando fui contemplado com o sinal de sua presença. Revelou-se de forma inesperada, sutil, marcante. Registro formal preciso, dizia-me que tudo daria certo e na hora certa, que necessitaria exatamente de tempo, para pensar, fazer e melhorar. Tudo mudou desde então. Foi-se o período sabático de reciclagens, prenúncio de novos tempos, novo ciclo, a roda da fortuna a brindar-me em círculo virtuoso. O conceito de tempo é tão delicado, relativo e particular. O que para uns é muito rápido, para outros é insuportável de se aguardar. A palavra tempo tem origem no latim. Ela é derivada de tempus e temporis, que significam a divisão da duração em instante, segundo, minuto, hora, dia, mês, ano, etc. Os latinos usavam aevum para designar a maior duração, o tempo. A palavra idade, por exemplo, surgiu de aetatis, uma derivação de aevum. Tema recorrente na música, literatura, cinema e no cotidiano, claro e inegável que há tempo para tudo. Há várias passagens bíblicas que falam sobre o tempo, entre elas o Livro dos Eclesiastes 3: ‘Tudo tem o seu tempo determinado e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer e de morrer; tempo de plantar e de arrancar o que se plantou; tempo de derrubar e de edificar; tempo de chorar e de rir; tempo de prantear e de dançar’. Um dos maiores clássicos da literatura brasileira, ‘O Tempo e o Vento’, de Érico Veríssimo, é uma trilogia épica que remonta ao passado histórico do Rio Grande do Sul dos séculos XVIII a XX, focaliza as disputas de terra e poder e é dividido em O Continente, O Retrato e O Arquipélago, chegando até à ditadura Vargas. ‘O tempo não para’, cantava o poeta Cazuza, que foi ao inferno, conheceu os Jardins do Éden e voltou. Esse, que é um de seus maiores sucessos, foi composto por ele, Arnaldo Brandão e pelo dramaturgo americano Howard Ashmann, quando parte da mídia já o dava como morto. Senso comum ouvir pessoas reclamando que não têm tempo para nada, que seus dias deveriam ter pelo menos trinta horas e queixando-se de que, a cada ano, o tempo está passando mais rápido. Há o ‘Tempo Rei’ de Gilberto Gil, transformando as velhas formas do viver e a ‘Oração ao tempo’ de Caetano que, sutilmente o compara ao amor paterno: ‘és um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho’. Uma de minhas favoritas é ‘Resposta ao Tempo’, de Cristóvão Bastos e Aldir Blanc na magnífica voz de Nana Caymmi, com suas batidas na porta da frente. Os práticos de plantão abusam da máxima ‘tempo é dinheiro’ como formato de verdade universal. Às vezes o dinheiro prolonga o tempo, mas não o compra ou controla. A propósito, partindo do conceito de que a vida imita a arte, o cineasta Andrew Niccol dirigiu e lançou em 2011 ‘O preço do amanhã’, com Amanda Seyfried e Justin Timberlake. No roteiro ambientado em futuro próximo, as pessoas nascem com um relógio integrado ao corpo, que controla o tempo restante de vida. Aos vinte e cinco anos, ganham um ano de bônus e, para viver mais, terão que comprar horas adicionais. Nessa sociedade, os ricos e poderosos conseguem ganhar décadas de uma só vez, podendo até se tornar imortais. Os outros têm de pedir esmolas, pegar emprestado ou roubar mais horas para chegar vivo até o final do dia. Ficção, previsão ou predição? Na comédia romântica de 1993, ‘Feitiço do tempo’, o diretor Harold Ramis aborda o tema de forma leve e traz a ideia de como podemos aproveitar o tempo e as oportunidades a cada dia. Contracenando com a linda Andie MacDowell, Bill Murray, repórter de televisão que faz previsões de meteorologia, vai a uma pequena cidade preparar matéria sobre a chegada do inverno. Pretendendo ir embora o quanto antes, inexplicavelmente, ele fica preso no tempo e é condenado a repetir os mesmos eventos do dia anterior. Ganhador de cinco Oscars em 2012, ‘A invenção de Hugo Cabret’ é uma pérola para os amantes da sala escura. O genial diretor Martin Scorsese homenageia Georges Méliès,considerado o inaugurador da narrativa cinematográfica, pioneiro da ilusão e dos efeitos especiais, já no século XIX. Baseado no romance homônimo de ficção histórica do americano Brian Selznick, de 2007, no princípio o filme centra-se em Hugo, magistralmente interpretado por Asa Butterfield, órfão que, nos anos trinta, mora clandestinamente numa estação de trem parisiense. Ele acerta grandes relógios e furta para sobreviver, sempre fugindo do inspetor que nunca o alcança porque o aparelho que usa na perna o impede de correr. Hugo é pego por um velhinho que toca uma loja de brinquedos na estação e que se apodera do seu maior tesouro, um caderno herdado de seu pai relojoeiro, com as instruções para reparar um antigo autômato em forma de menino. Inseguros e infelizes, casais em crise resolvem dar um tempo, que é uma pausa, um interromper do tempo conjunto. Americanos usam a expressão ‘give me a break’ para afastar alguém de forma abrupta: dá um tempo! Nos ringues, o gongo do tempo de final do assalto interrompe o massacre que resultaria em iminente risco de morte. Na ânsia de ouvir uma boa notícia, famílias se contentam com a imprevisibilidade médica e científica de que só o tempo dirá sobre o estado e a evolução do quadro do paciente. Ao final de noventa minutos de jogo, técnicos, jogadores e torcida culpam e massacram juízes por ter-lhes furtado trinta preciosos segundos de tempo extra que, acreditam, seriam suficientes para ganhar a partida. O tempo corrige quase tudo, as decepções amorosas, as decisões inconsequentes, os equívocos financeiros, o ódio e as injusticas, o tempo leva e traz amarguras, o tempo não tem pressa, está à nossa disposição e não está nem aí para nós.

domingo, 9 de dezembro de 2012

NÃO SAIA DE CASA SEM SUA MEIA LUPO

A cerimônia religiosa prosseguia em clima de completa harmonia e participação dos fiéis. O jovem pároco se preparava para concluir a pregação do evangelho, quando estabeleceu-se uma pequena confusão entre os presentes, seguida de manifestações de espanto, barulhos e gritos de mulheres pedindo ajuda. Curiosa e preocupada, a multidão concentrou-se em torno do grupo que tentava ajudar alguém caído no chão. Era Josivaldo, que passara mal repentinamente. Aflita, Gregorina, sua mulher, desabotoara sua camisa pólo amarela para ele respirar melhor, mas não estava adiantando. Enquanto alguém teve a ideia de chamar o serviço médico, amigos o carregaram e o deitaram no banco de madeira. Pessoas usavam os livretos de cânticos para abanarem Josivaldo, outros resolveram tirar-lhe os sapatos e colocar suas pernas no alto do banco. Foi quando Gregorina experimentou aquela terrível visão que a devastou mais do que o infarto do marido: uma de suas meias estava furada, o dedão cumprimentava e batia continência a todos. Nem em seus piores pesadelos, Gregorina, tímida, reservada, imaginara que alguma dia passaria por uma situação tão constrangedora daquelas. Quantas vezes ela insistira para que o seu amorzinho jogasse aquela meia fora, mas ele não a ouvia. Tantas vezes, durante os jogos da estrela solitária, ela tentara cortar aquela unha enorme, independente e exibida, mas ele reclamava que estava concentrado na peleja e que o procedimento poderia esperar e ser feito mais tarde. Agora ela se via ali, em plena igreja, com toda a comunidade eclesiástica, suas vizinhas e amigas presenciando aquela situação patética, seu amado aguardando o socorro e todos ali, constritos, contemplando aquele dedão saindo da meia. Gregorina tentou se acalmar, mas a vida imita a arte, daí começou a passar um filme em sua cabeça, suas colegas de dança na academia comentando a cena, Jane Godoy publicando a fatídica foto na coluna social com os dizeres: Josivaldo e sua meia, ambos em péssimo estado; provavelmente Márcio Cotrim criaria um novo verbete - meia furada - e o publicaria no jornal de domingo. À medida que pensava, hipóteses outras se encadeavam em sua mente e a assustavam, como sua filha sendo ridicularizada na sessão de tingimento capilar, seu extrovertido neto correndo em volta do sofá a repetir: 'uma era vez' um vovô com sua meia furada no meio da multidão...E, pior dos mundos, quando a notícia chegasse ao conhecimento daqueles quatro sobrinhos endiabrados, cínicos, que perdiam a tia mas não a piada, aumentando, exagerando, criando detalhes, como faziam desde pequenos, com o propósito único de irritá-la e tirá-la do sério. Teria que cancelar as comemorações de passagem de ano, os almoços mensais especialmente preparados para aqueles capetas que agora se aproveitavam da situação. E mais, com a rapidez das redes sociais, a notícia cruzaria os estados e seria divulgada nos arredores da metrópole onde nascera, tudo por conta daquele outro sobrinho debochado, mais descarado que os quatro irmãos metralhas juntos. Aquilo tudo era castigo demais, depois de tantas orações, tantas novenas, não conseguia compreender a razão de tanto infortúnio. Felizmente, a ambulâcia chegou e, quando Josivaldo era conduzido de maca, Gregorina retirou seu xale comprado em Punta del Este e o jogou sobre os pés do amado, enquanto ligava para sua secretária separar um par de meias novas e um cortador de unhas bem afiado. * Por tratar-se de história verídica, a pedido da família, os nomes dos personagens foram trocados.

domingo, 22 de julho de 2012

TRÊS MOMENTOS EM MIL CORAÇÕES

Aconteceu, primeiro, quando eu me deitei de costas no chão frio. Fiquei ali parado, absorto, simplesmente a contemplar o céu. Hipnose de um azul intenso, profundo, eu finalmente conseguia me concentrar no céu. Daí comecei a ver os detalhes, as nuances, os contrastes que sempre estiveram ali e eu, envolvido numa correria sem fim, meio ou início, atropelado por uns e a atropelar outros, acalmei meu coração já que agora a visão era estética de pura estática. Um céu que abraça pássaros, aeroplanos, nuvens, tempestades, que tudo reflete e faz refletir. Estava ali o tempo todo, um tipo raro da maior complexidade envolta na maior simplicidade e disponibilidade. O céu das asas deltas e das andorinhas, dos paraquedistas e dos urubus, dos deuses e das marias do céu. Depois, foi quando eu me postei, hipnotizado, em frente ao mar. Horas se passaram, homens e mulheres passaram, passou a fome e o presente ia naturalmente virando passado. O mar que a muitos assusta e amedronta, que é o sustento de tantos, tragédia e descanso de aventureiros e desesperados, com suas profundezas, sua vida própria, expandindo-se em ondas crescentes e ritmadas, magia e estratégia líquida e certa. Eu que desci produndamente em mergulhos solitários justamente por não conhecer o limite dessa profundidade, que visitei cidades submersas com suas igrejas e cemitérios, eu que era recebido, envolto e devolvido por criaturas marinhas imaginárias, eu agora voltava a boiar em segurança, com os olhos fechados e a pele ficando novamente seca pelos raios de sol. Por fim, eu penetrei a floresta fechada de minhas impressões, lugar que em segundos transformava o dia em noite, com seus troncos imensos, folhagens de incontáveis tons de verde, os ventos e a umidade que congelavam minhas veias e dificultavam minhas passadas. De olhos fechados, eu andava e não estava só. Sentia-me conduzido por mãos macias e pequenas que me desviavam de buracos e que, calmamente, esperavam eu ultrapassar as complexas armadilhas que os troncos retorcidos caídos montavam. Lugar de ar puro e habitat de animais perigosos, senti minha mão se soltar de minha estrela guia. So então, quando fiquei sozinho e os medos se dissiparam, pude ver uma luz no fim daquela vereda, que não era saída nem chegada, era simplesmente minha travessia.

domingo, 3 de junho de 2012

WAGNER MOURA EM TRIBUTO À LEGIÃO URBANA

No peito dos desafinados também bate um coração! O verso final do clássico ‘Desafinado’ de Tom Jobim e Newton Mendonça bem que poderia ser o título desta crônica, sobre os shows que a MTV transmitiu ao vivo nas noites de terça e quarta, 29 e 30 de maio, direto do Espaço das Américas, na Barra Funda, SP. Karaokê de luxo para o ator-cantor Wagner Moura, que recebeu o convite de Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá para cantar as músicas da Legião em dois shows, parte das comemorações dos trinta anos da criação da banda. Convite aceito de cara, o admirador e fã incondicional se lançou de corpo e alma no projeto e, ironia à parte, incorporou o capitão Nascimento do filme ‘Tropa de Elite’ e usou a principal característica da personagem: a coragem para o enfrentamento cego e meio irresponsável ao que se apresentava estabelecido e intocável. O concerto deu o que falar na mídia em geral, jornais, rádios e sobretudo nas redes sociais. Curiosa e atentamente, eu já vinha acompanhando os ensaios dos shows em estúdio transmitidas pela MTV e meio que me preparei para o que seria, sem expectativa e preconceito. Deixei passar uns dias para processar um certo estranhamento que tive e acompanhei tudo com cuidado, já que é uma obra concluída, consagrada, influente, popular e aberta. Rolou de tudo, críticas contundentes à perfomance vocal e aos exageros performáticos do ator, elogios sinceros ao trabalho levando-se em consideração a complexidade das músicas e o fato dele ter procurado imprimir estilo próprio e não imitar a forma original e extremamente marcante com que Renato Russo imortalizou as músicas. Carmem Manfredini, irmã de Renato e falando em nome da família, criticou de forma contundente não o projeto em si, mas a falta de preparo para o ator que, segundo ela, não tem um bom ouvido musical, que faltou ensaio, afinação, assessoria de um profissional de canto e que os dois artistas da banda deveriam tê-lo orientado melhor. Ainda segundo ela, foi constrangedor, desrespeitoso e frustante, pois gostaria que a homenagem tivesse sido mais bem feita, já que cantar as músicas de Renato Russo é difícil até para um profissional e há que se ter cuidado com essa obra. Magoada, registrou que não foi consultada e que os representantes de Marcelo e Dado alegaram que a família não tem poder de decisão por não serem artistas. Hilárias as manifestações via twitter e facebook, pelo caráter informal, condensado e virótico das postagens. Resumo geral: poucas vezes vi um evento receber tantas manifestações críticas diferentes, contraditórias, técnicas, emocionais, positivas e agressivas, mas absolutamente todas com um mínimo de razoabilidade e veracidade. Normalmente nos manifestamos ou nos deixamos influenciar por determinada vertente, mas, nesse caso, todos têm razão, há margem de compreensão e defesa para todas as linhas críticas imagináveis. O cara desafinou mas foi corajoso e autêntico, os integrantes da banda assumiram o risco de uma tragédia mas se divertiram e conduziram os concertos com equilíbrio e classe, a platéia se comportou de forma apaixonada e respeitosa, com exceção de um sujeito no segundo dia, criticando aos berros de 'baixo astral' a performance acústica da música 'Geração Coca-Cola' e conseguiu tirar Dado do sério, mas o elemento foi convidado a abandonar o local e a harmonia reinou até o final. Foram importantes as participações do guitarrista Andy Gill, líder da banda Gang of Four, do pós-punk britânico, que influenciou os legionários Renato, Marcelo e Dado nos anos oitenta, de Marcelo Catatau e Clayton Martins da banda cearense 'Cidadão Instigado' e do baixista dos Paralamas Bi Ribeiro. A banda base teve Rodrigo Fávaro no baixo, Gabriel Carvalho, guitarrista do grupo baiano 'Sua Mãe', cujo cantor é Wagner Moura e Caio Fonseca, teclados. Acho que foi um evento importante para reviver e discutir o belo e intenso trabalho deixado pela Legião, Wagner Moura foi talentoso e se divertiu bastante, mas Renato Russo merece homenagens com mais qualidade profissional e técnica. No final, tentei chorar e não consegui, mas também não foi tempo perdido. A seguir, o set list das músicas, por ordem de apresentação: 1) Tempo perdido 2) Fábrica 3) Daniel na cova dos leões 4) Andrea Doria 5) Quase sem querer 6) Eu sei 7) Quando o sol bater na janela do seu quarto 6) A via láctea 9) Esperando por mim 10) Índios 11) Monte Castelo 12) O teatro do vampiros 13) Geração coca-cola 14) Damageg goods (Andy Gill) 15) Ainda é cedo 16) Baader-Meinhof Blues 17) Sereníssima 18) Se fiquei esperando meu amor passar 19) Há tempos 20) Perfeição 21) Teorema 22) Antes das seis 23) Giz 24) Pais e filhos 25) Será 26) Faroeste caboclo

domingo, 13 de maio de 2012

A CULPA NÃO É DAS MÃES

Mamãe mandou eu bater nesse daqui, mas como eu sou muito teimoso eu vou é bater nesse daqui! Essa brincadeira poderia ser usada perfeitamente pelo Anderson Silva ao se referir à própria mãe. Embora desobediente e respondão como qualquer adolescente de plantão, decidiu levar à sério e acatar as orientações maternas, daí saiu batendo em todo mundo e hoje é um ídolo e respeitado campeão mundial, mas conservou a voz infantil para deixar a mamãe bem impressionada. Injustamente, algumas mães são acusadas de escravizar seus filhos, mantendo-os presos e podando-lhes a liberdade. Às vezes elas erram a mão na fina e complexa linha divisória da educação que acolhe, testa e prepara o filho em conceitos de liberdade e independência para as batalhas da vida. Por coincidência de data e destino, neste ano o dia das mães caiu justamente no treze de maio, dia consagrado pela princesa Isabel ao abolir a escravatura. Hilária a figura da mãe judia, super protetora e repressora, personagem recorrente utilizada por Woody Allen e magnificamente caracterizada no filme 'Contos de Nova Iorque', quando aparece no céu de Manhattan dando conselhos sobre mulheres e casamento. Isso irrita e ridiculariza o filho diante da multidão que, dividida, apoia e reforça as cobranças da mãe ou questiona a interferência indevida da velhinha. Para qualificar a tão almejada vaga no serviço público que representa estabilidade e segurança o concursando diz que 'o emprego é uma mãe'. Ameaçado e posto sob a mira dos ataques americanos, o ditador iraquiano reagiu com veêmencia ao mostrar a sua convicção estratégica e, respaldado pelo poder bélico, disse que seria travada a 'mãe de todas as batalhas'. Outra situação muito comum é aquela em que o sujeito fica sem saída, pressionado e sem saber exatamente o que fazer, não resiste e solta a pérola: eu quero a minha mãe! Sem entender as razões que levaram sua mãe a abandoná-lo ainda criança, anos depois John Lennon escreveu a belíssima e intensa música 'Mother' para registrar as dificuldades emocionais que passou, já que ao reencontrá-la e prestes a retomar o relacionamento ficou marcado para sempre ao se despedir e vê-la atropelada do outro lado da rua. Nos estádios, o inconsciente coletivo da multidão se revela sem pudor e sem condescendência para desqualificar o adversário ou o juiz atacando-lhes justamente a pobre e inocente progenitora, com os mais impropérios palavrões. Sigmund Freud criou a expressão 'Complexo de Édipo' ao se referir à fase da infância quando os meninos são apaixonados pela mãe. A origem do tema vem da lenda grega que originou a história de 'Édipo Rei, escrita por Sófocles': Laio, rei de Tebas, foi advertido de que uma maldição iria acontecer, pois o próprio filho o mataria e se casaria com a mãe. Ao nascer, abandonado pelo pai no Monte Citerão e com um prego em cada pé, Édipo sobreviveu, foi salvo por um pastor e adotado pelo rei de Corinto. Ao saber da previsao, Édipo foge da cidade pois achava que a tragédia se daria com seus pais adotivos. No caminho, provocado, brigou e matou Laio, sem saber que era seu pai. Voltando à cidade natal, casou-se por acaso com Jocasta, sua mãe biológica, com quem teve quatro filhos. Durante uma peste, ao consultar o oráculo, Jocasta e Édipo descobrem a verdade, ela comete suicídio e ele fura os próprios olhos por ter estado cego e não reconhecer a própria mãe. A tragédia inspirou Igor Stravinsky a compor um oratório e a banda americana The Doors a escrever a música The End. Sem intenção predeterminada, a crônica começou em tom de comédia e terminou dramática, mas foi a forma que encontrei, nada tradicional, admito, para homenagear as mães em seu dia. Felicidades!

sábado, 5 de maio de 2012

POLÍTICA E ECONOMIA, DAS JURAS AOS JUROS

Neste espaço o leitor acompanha, em sua maioria, abordagens e análises relacionadas a temas culturais, mas o título já antecipa, a pauta hoje está relacionada à política e economia. Com frequência ouço pessoas dizerem que não se interessam por política. Entendo perfeitamente essa opção, fruto do desgaste ligado a escândalos de corrupção, tráfico de influência e falta de ética, mas há um equívoco ao se confundir política com políticos. Acompanho diariamente esses assuntos, pois as discussões e decisões do presente conduzem e definem nossa situação futura, afinal queremos e buscamos estabilidade e crescimento. O país precisa urgentemente de uma reforma política estrutural que dê suporte ao presidencialismo de coalizão. Não se chega ao poder sem composições partidárias, ainda que muitas delas tenham linhas programáticas divergentes. Isso é democracia, convivência de opostos, com foco e respeito ao eleitor que dá voz e voto a seu representante. Atualmente existem quase trinta partidos e o ambiente político, com suas complexidades e interesses, se perde e se corrompe na falta de regras e de coerência. Na guerra diária por espaço, os partidos naninos se unem e se fortalecem num conjunto esquizofrênico e desarmônico de idéias para brigar com aqueles grandes, mais coerentes e realistas pela experiência e história traçadas. O Brasil precisa de uma reforma política com regras claras e definidas, partidos com estruturas consolidadas nos estados e municípios, com muitos anos de formação e serviços prestados aos cidadãos, representatividade e fidelidade partidária. Entendo que o país não comporta nem precisa mais do que cinco ou seis partidos. Precisamos, ainda, acabar com o voto obrigatório para qualificar melhor nossos representantes. Berço da democracia, os Estados Unidos têm dois partidos grandes, que se revezam na disputa do poder. Desobrigada de votar, pouco mais de quarenta e cinco por cento da população sai de casa e exerce o seu direito na decisão. A baixa adesão não traduz a leitura de desinteresse ou desinformação. O eleitor está mais preocupado é com a economia, isso é que faz a diferença. Quando morei lá, pude constatar que, a cada dez páginas dos principais jornais, oito abordavam economia e apenas duas cobriam política. Aqui no Brasil, graças à visão dos presidentes Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso que, juntos, inauguraram a modernidade paterna conjunta ao criar o Plano Real, o país começa a colher os frutos da estabilidade monetária. Mantida e consolidada no governo Lula, a economia brasileira cresceu e hoje se destaca entre as oito potências do cenário mundial e a tendência é melhorar ainda mais pelo enorme potencial de exploração de energias alternativas, produção agrícola e recursos naturais. Nas últimas semanas, estamos acompanhando a queda de braço da presidenta Dilma Roussef e equipe com os banqueiros na bem formatada estratégia político-financeira para derrubada dos juros e lucros bancários. Estava difícil entender e aceitar bancos oficiais e privados cobrando dezesseis por cento de juros ao mês no cartão de crédito num cenário de inflação de seis por cento ao ano. Até os tradicionais agiotas particulares e os escritórios de factory sentiam-se intimidados com tamanha ganância. Ficamos todos surpresos e satisfeitos com as manchetes de que os bancos, em apenas uma semana, baixaram os juros do cheque especial de quase nove para pouco mais de três por cento ao mês. Essa dinâmica de cortes e ajustes deve impulsionar ainda mais a economia e atrair a ocupação de espaços dos consumidores em suas demandas por mais produtos, serviços e qualidade de vida. Em ondas de realismo e otimismo, espero que os movimentos de melhoria caminhem na direção de mais investimento em educação e cultura, pilares básicos e fundamentais para que os brasileiros usufruam de forma consciente desse círculo virtuoso que se apresenta e que finalmente trará dias melhores para todos.

quarta-feira, 28 de março de 2012

BIA REIS – UMA MEMÓRIA MUSICAL

Foi com imenso pesar que soube da morte da jornalista e radialista Bia Reis, há pouco mais de uma semana. Embora não a conhecesse pessoalmente, sua voz calma e serena era-me familiar e prazerosa, eis que todos os domingos, invariavelmente, às onze horas, eu acompanhava o programa ‘Memória Musical’, que ela produzia e apresentava desde 1990 e manteve de forma brilhante e competente nesses vinte e dois anos. Para quem acabou de chegar ao planeta cultura musical e nunca ouviu falar do programa, a proposta era entrevistar grandes artistas e colher deles revelações sobre as músicas que marcaram suas vidas. Domingo passado, dia 25 de março, seus colegas da FM Nacional e integrantes da equipe que produzia o programa fizeram uma homenagem surpreendente ao lembrar as músicas que marcaram a vida dela. Foi uma edição muito bonita, elegante, sem extremismos, com textos e depoimentos impecáveis, emoção na medida certa e apresentado pela ótima jornalista Marli Arboleia. Parabéns a todos da rádio, pela justa, merecida e sincera homenagem. Desde menino sempre gostei de rádio. Considero a mídia mais completa e abrangente, pois talvez seja a única na qual pode-se executar qualquer atividade enquanto ouve-se música ou notícias: correndo, pedalando, trabalhando, vendo tv, dirigindo, de olhos fechados, nenhum outro veículo de comunicação possibilita essa versatilidade de contato com o ouvinte. Há sete anos escrevi-lhe um email, elogiando-a e ao programa. Disse-lhe da minha admiração pelo formato e pela produção inteligente, da elegância e respeito com que ela recebia e apresentava seus convidados, demonstrando profundo conhecimento pelo trabalho deles. Disse-lhe, ainda, que considerava ‘Memória Musical’ o melhor programa musical entre todos os que eu já tinha ouvido, inclusive entre os diversos programas das grandes redes americanas, nos quase três anos em que morei na terra do Tio Sam. Registrei que, especialmente, os programas com Egberto Gismonti, Lô Borges e Dori Caymmi tinham sido os campeões para mim e sugeri que ela lançasse cds com coletâneas dos inúmeros depoimentos registrados. Dias depois, imaginem minha alegria, quando ela me respondeu dizendo que tinha ficado muito feliz ao ler meu depoimento e que se emocionou bastante com meus elogios, que lera várias vezes minha mensagem antes de me responder. Como o ‘Memória Musical’ tinha ótima audiência e fazia muito sucesso, em 2004 ela lançou o ‘Projeto Brasília’, aos sábados, entrevistando e dando oportunidade a cantores e compositores da cidade. Dentre as muitas qualidades, ela tinha uma em especial: sabia ouvir, deixava o convidado falar e introduzia considerações pertinentes e rápidas. Parece óbvio, mas isso é raro, tanto em rádios quanto na televisão, poucos jornalistas têm essa perspicácia e sensibilidade em conceder o espaço de forma respeitosa às idéias e novidades trazidas pelos convidados. A melhor exceção trata-se do jornalista Roberto D’Avila com sua Conexão, o melhor talk show da TV brasileira. Em Brasília, outro programa excelente em formato, conteúdo e estilo de apresentação é o ‘Então, foi assim?’ do jornalista e produtor Ruy Godinho, também oferecido pela FM Nacional nas tarde de sábado, quando o compositor fala sobre o processo de criação musical. Voltando à Bia Reis, a memória musical e afetiva que ela semeou ficará por muitos anos em nossos corações e mentes e, certamente, terá deixado influências para que discípulos e admiradores ‘toquem’ o projeto da melhor forma. Ao deixar o plano piloto e completar esse ciclo, imagino outros planos em que ela terá oportunidade de conhecer e entrevistar gênios e talentos que também nos deixaram saudosos e com ótimas lembranças. Bia Reis, parabéns, saudades, a música agradece o seu talento e dedicação.

domingo, 18 de março de 2012

DA SÉRIE: COISAS QUE ME AZUCRINAM – PARTE 2 – A FILA

Essa, com certeza, você já viu e teve aquela reação meio raiva, meio graça, meio espanto. Situação: FILA DE CINEMA. Entediado com o reality show de cada dia que, apesar de versátil, cultural e profundo, às vezes cansa, daí o sujeito vai ao cinema e leva mulher, sogra, cunhada, filhos e os amiguinhos que foram passar o fim de semana. Sabe aquele programão em família, domingo no shopping, várias salas de cinema, lançamento blockbuster, energia exaltada, o leitor visualizou a cena. Muito bem. Nosso amigo posiciona, estrategicamente, um representante em cada uma das filas. Para quê? Lógico, se dar bem, ganhar tempo, levar vantagem em tudo, lei de Gerson, certo? Esse hábito ridículo é de uma cretinice sem tamanho, para mim é de uma mediocridade e burrice estupendas. Há uma linha divisória de comportamentos éticos difíceis de serem tipificados claramente, que guardam relevantes situações e que constituem motivo de atenção das pessoas sensatas e educadas. Estou falando de lixo jogado pela janela do carro, uso do celular em locais fechados, a espera elegante de que todos saiam antes de se entrar no elevador, e por aí vai, mas esses temas serão abordados oportunamente. Voltando à cômica cena, o senhor cérebro vai pagar para todos, os ingressos serão comprados em única vez, mas cada um vai avançando enquanto conversam, dão piscadinhas, mandam beijos, os mais distantes enviam torpedos informando que a fila deles está mais ligeira, ficam se monitorando em sintonia e atualizando o status da missão. Trata-se de operação delicada, importante, que exige concentração, mas, ao mesmo tempo, uma performance que transmita naturalidade e harmonia, praticamente uma evolução de escola de samba parada em frente aos jurados, fazendo bonito pra ficar bem na fita. Qualquer pessoa com o mínimo de inteligência sabe que, estatisticamente, filas andam praticamente juntas, nos bancos, no trânsito, no supermercado e, até para solteiros desesperados, a fila anda. Por essa máxima, evidente que os espertinhos chegarão juntos até à faixa amarela do caixa e ouvirão, ao mesmo tempo, a tão esperada senha libertadora daquele suplício: o famoso ‘próximo da fila’. Aí vem a melhor parte. Num passe de mágica, simetricamente, dirigem-se todos para a fila do provedor financeiro que irá compensar o esforço concentrado da comunidade com o tão esperado ingresso. Alegria geral, os incautos se abraçam, riem e, cientes da estratégia bem executada, preparam-se para a próxima etapa: a fila da pipoca.

sexta-feira, 16 de março de 2012

DA SÉRIE: COISAS QUE ME AZUCRINAM – PARTE 1 - A GRAMA

Fico indignado quando vejo uma placa de: NÃO PISE NA GRAMA. Conto até dez, pois dá vontade de pisar é na placa. Explico: quer coisa mais natural pra se pisar do que grama? Grama foi feita pra ser pisada. Pisar em grama é bom demais da conta. Ela existe pra isso. Se não pisada sua existência carece de sentido, não se justifica. Detalhe: não estou falando dessas gramas especiais japonesas, cheias de frescura, frágeis, que não aguentam chuva, frio ou trotes de filhotes de galgo. Falo das gramíneas, divulgadas pelas revistas agropecuárias especializadas, que constituem o mais importante grupo de plantas daninhas herbáceas: grama-batatais, capim-canela, capim-oferecido, rabo-de-burro, amargoso, pé-de-galinha, grama-de-burro, sapé e capim-navalhão, entre outras. São resistentes e ótimas de se pisar. Mas aí, vem o fiscal todo importante e manda pregar a maldita placa. Ninguém pisa, trata de desviar, crime inafiançável, cadeia pros pisadores de grama. Eu posso com isso? Fico imaginando um sujeito desses num clube de golfe, sofrendo ao ver aquela imensidão de grama bonita, aparadinha, em desníveis planejados estrategicamente e sendo pisada por todo mundo, levando bolada, tacos de ferro arrancando tufos sem piedade. O sujeito tem ataque de histeria com rigidez catatônica. Sente-se ema e quer enfiar a cabeça num daqueles buracos. O golfista dá aquela tacada sensacional, ouve-se, em afinado coro, o público bradar a última das vogais e sair, em comitiva, atrás do tigrão-da-floresta de plantão. Nessa maluquice sem fim que virou a vida da gente, no limite do limite, penhasco de um lado e abismo do outro, a melhor coisa a fazer é tirar os sapatos de couro e borracha a nos isolar das raízes, a nos entupir de radicais livres. Livre-se deles. Depois, caminhar, lentamente, descontraidamente, pisando naquela grama gostosa, úmida do orvalho matutino, fria nas noites de inverno das nossas almas inquietas, um merecido mergulho na piscina daquela criança ingênua e franca que habita nossos sonhos e que nos incita a sermos felizes de novo. Em tempo: agora falando sério, não precisa sair chutando placas, mas não deixe de caminhar na grama, valeu?

domingo, 4 de março de 2012

A VEZ DO BRASIL MUDAR A VOZ DO BRASIL

Durante muitos anos o famoso bordão anunciava: ‘em Brasília, dezenove horas’. Depois mudou para: ‘Sete horas em Brasília’. Aí, direto e reto, entra ‘O Guarani’, ópera de Carlos Gomes, adaptada para ritmo de samba, forró, choro, roda de capoeira, bossa nova, moda de viola e até techno! Pronto. Isso dá um desânimo no pacato cidadão, sobretudo quando se está preso no engarrafamento, sem áudio cd, naquela dependência agradável do rádio amigo de quase todas as horas, menos de sete às oito da noite. Transmissão obrigatória em todas as rádios brasileiras, à exceção das mídias via internet e tv por assinatura, ‘A Voz do Brasil’ é um antiviagra, um paralisante crioterápico, um parafuso com a ponta virada pra cima na entrada da porta à espera de quem vai ao banheiro às três e meia da manhã. Ninguém ouve mais esse martírio. Nem motorista de táxi. Nem vigilante de obra, com aquele radinho que tem capa de couro. O sujeito desliga na hora, pois a pilha está cara. Criado em 22 de julho de 1935 por Armando Campos, para popularizar as idéias do amigo Getúlio Vargas, inicialmente chamou-se ‘Programa Nacional’ e era apresentado por Luiz Jatobá. De 1938 a 1962 passou a se chamar ‘A Hora do Brasil’. Por determinação do presidente Médici, a partir de 1971 recebeu o nome de ‘A Voz do Brasil’. Depois o artigo foi retirado e permanece até hoje: 'Voz do Brasil'. Em 1995, entrou para o Guiness Book como o programa de rádio mais antigo do Brasil e é, também, o noticiário mais antigo entre as rádios do Hemisfério Sul. Quem não acredita, pode conferir no wikipedia, que não me deixa mentir sozinho. Apesar da veiculação obrigatória imposta pelo Código Brasileiro de Telecomunicações para todas as rádios brasileiras, algumas delas, da capital paulista e, paradoxalmente, do estado do ditador gaúcho, amparadas por liminares, estão desobrigadas de sua transmissão. Estatisticamente, cidades das regiões norte e nordeste são as que mais ouvem o programa, provavelmente pela falta de informativos diários de política, economia e cultura e da massificação de rádios regionais que priorizam a grade com musicais populares. Entendo que a sociedade precisa se atentar para discutir e excluir resquícios do período da ditadura militar que restaram impregnados no cotidiano brasileiro, entre eles voto e horário político obrigatórios e a manutenção, por parte de órgãos oficiais, da ocupação de espaços estratégicos importantes na mídia. Do ponto de vista prático, único, da comunicação, o programa não se justifica mais, tamanha a rapidez com que as notícias e divulgações oficiais são apresentadas e atualizadas na internet em tempo real e, mesmo, nas redes de televisão por assinatura. Dificilmente haverá situações em que o governo mantenha reservada alguma notícia a ser divulgada, de forma inédita, às sete da noite. Há recentes discussões sobre a obrigatoriedade de transmissão do programa, inclusive com projeto de lei na pauta de votação para os próximos meses. Infelizmente, essa flexibilização considera apenas a possibilidade de alterar o horário de início do programa para as 19, 20 ou 21 horas em rádios particulares não educativas. Rádios de concessão educativa, públicas, legislativas, comunitárias e estatais permaneceriam com a obrigatoriedade normal. Há espaço de alterações pontuais para rádios particulares que desejem transmitir jornada de futebol no horário de 19 às 22 horas, mas com o prévio consentimento de órgãos competentes. Acho que as alterações deveriam ser mais radicais e efetivas. Penso que deveria haver um rodízio semestral entre todas as rádios de uma mesma cidade, por todo o país, de forma que apenas uma delas transmitisse o programa diariamente. Com isso, seria preservado o direito àquele cidadão que desejasse continuar ouvindo o programa e o estado continuaria a divulgar ações e informações pertinentes às várias esferas do executivo, legislativo e judiciário que utilizam o programa. Com a palavra, organismos sociais, representantes das mídias e o povo brasileiro, com sua voz, a voz do Brasil!

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

A SINA DA VACINA QUE ENSINA

Na hora da vacina, a espetada da agulha é traumatizante para crianças e pais; depois é só tranquilidade e benefícios duradouros. Com essa filosofia na cabeça, levei meus filhos ao show do João Bosco, voz e violão, uma releitura de suas músicas mais antigas e sucessos de artistas consagrados. Tiro e queda. Eles detestaram a apresentação, ficaram muito invocados e, se já não gostavam do 'aguirilôba, brigadugenti', agora é que vão querer distância desse tipo de música. Tá de brincadeira, pai? Com caras de o-que-é-que-eu-vim-fazer-aqui?, cintos de segurança afivelados, cada um ligou o seu ipod no primeiro set-list de heavy rock que encontrou e vamos à pizza, entrada de focaccia de alecrim e sal grosso, que ninguém é de ferro. Para mim foi surpresa nenhuma, tudo certo como dois e dois são cinco, diria o rei; ou melhor, tudo sob controle, diria o comandante do Titanic. O show foi sensacional. João tocou Agnus Sei, Caça à Raposa, Incompatibilidade de Gênios, Escadas da Penha, Bala com bala, todas do começo da carreira e deixou as mais populares pro final: Papel Machê, Quando o Amor Acontece, Ametista e O Bêbado e a Equilibrista. Considerando as idades deles e relevando a corujice do pai, já possuem relativa cultura musical e muita afinidade com instrumentos. 'Só não serão músicos, profissionais ou amadores, se não quiserem', carimbou o tio Carlos, há algum tempo. Voltando ao concerto, Bruno, dez anos, começou todo animadinho, na metade do show estava esticado, com as pernas em cima dos meus joelhos e, ao final, praticamente deitado no carpete. Rafael, mais velho, parecia ter assistido a uma ópera completa com cinco horas, de tão cansado e desanimado. Tudo compensou quando, na saída do teatro, ele mandou duas observações ultra pertinentes: 'não entendi nada das letras' e 'ele usa uns acordes bem diferentes, não é, pai?' Yes! Give me the five! Estamos falando de letras do Aldir Blanc, com a complexa estética do sincretismo religioso e a romântica malandragem suburbana carioca. Para um garoto de treze anos, a simples identificação e estranheza dessa literatura musical é sinal de que está tudo bem; não entender, então, é o máximo da inteligência. So far, so good. E o comentário sobre os acordes diferentes? Estamos falando de nonas, décimas terceiras e diminutos, com a dinâmica de interpretação do estilo-joão-bosco de tocar violão. De tão feliz, liberei duas latinhas de guaraná para cada um durante a pizza, porque normalmente é uma só. Sempre ouvi mpb, blues, jazz, soul music americana e rock ingês clássico. Bem ou mal eles sempre estiveram expostos a esse tipo de música e, nos últimos anos, passei a ouvir rock mais pesado, por influência deles. Em menos de um ano vimos Guns & Roses, Green Day e Ringo Star, entre outros. Procuro ouvir um pouco de tudo, de Vivaldi a Restart, sem preconceito ou predisposição negativa, afinal há que se ter conhecimento e convicção pra elogiar ou esculhambar. Há três tipos de música: a boa, a ruim e a do Clube da Esquina, que não é boa nem ruim, é fundamental. A experiência de ver João Bosco ao vivo foi interessante e importante, a vacina da qualidade musical foi inoculada e renderá frutos positivos. Assim é a vida. Assim é o ‘mundo, mundo, vasto mundo’. Quantos ensinamentos nos foram passados por nossos pais e amigos e, à época, não fizemos a leitura equilibrada e justa de sua importância? Tem nada não. O importante é que a emoção sobreviva.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

QUARTA LISTA – 5 MÚSICAS POPULARES BRASILEIRAS

Amigos leitores e eleitores, cumprindo a promessa, essa é a quarta e última lista, que completa o rol das minhas vinte canções brasileiras favoritas (pelo menos nesse momento da minha vida, eis que, provavelmente daqui a um tempo elas mudem, por duas razões: a mpb é muito rica em quantidade e qualidade e eu sou uma metamorfose ambulante, como diria o meu xará Paul Rabbit, que já chamou o Raul muitas vezes, para criar e descarregar diversas coisas!) Ok, a partir de hoje, conto com a sua participação, votando em três canções que mais gostar dentre as que comentei. Independentemente das posições de preferências nas votações individuais, cada uma delas receberá um ponto e, ao final, as mais citadas levarão o título de 1°, 2° e 3° lugares nas três músicas do blog PALAVRAS GERAES. Abaixo, antes da apresentação comentada das cinco últimas, vem a relação completa das vinte. Caso não tenham lido ou queiram reler meus comentários sobre todas as canções, rolem a tela e encontrarão as outras três relações. Isso dito, viva São Benedito, boa leitura e hasta la vista!

Ah, ia me esquecendo: cada pessoa poderá escolher apenas três músicas e é bom que se apressem, pois a votação se encerrará assim que atingir um milhão de votos!!!

A MOÇA DO SONHO – Edu Lobo – Chico Buarque
ÁGUAS DE MARÇO – Tom Jobim
AS APARÊNCIAS ENGANAM – Tunai - Sérgio Natureza
AS CANÇÕES QUE VOCÊ FEZ PARA MIM – Roberto Carlos - Erasmo Carlos
COMEÇARIA TUDO OUTRA VEZ – Gonzaguinha
CAIS – Milton Nascimento – Ronaldo Bastos
CHEGA DE SAUDADE – Tom Jobim – Vinícius de Moraes
CHORO BANDIDO – Edu Lobo – Chico Buarque
DEPOIS DOS TEMPORAIS – Ivan Lins – Vitor Martins
ESSA MULHER – Joyce – Ana Terra
ESTÁCIO HOLLY ESTÁCIO – Luiz Melodia
EU E A BRISA – Johnny Alf
LIGIA – Tom Jobim
O MUNDO É UM MOINHO - Cartola
OCEANO – Djavan
PARA VER AS MENINAS – Paulinho da Viola
QUANDO O AMOR ACONTECE – João Bosco – Abel Silva
ROSA – Pixinguinha – Otávio de Sousa
SAMPA – Caetano Veloso
SOL DE PRIMAVERA – Beto Guedes – Ronaldo Bastos


AS CANÇÕES QUE VOCÊ FEZ PRA MIM – Roberto Carlos - Erasmo Carlos

Não há como negar: as canções do Rei embalaram momentos importantes em minha vida. Os primeiros encontros, férias de verão, festas, comemorações e por aí vai. Segundinho, seu filho, tem um programa na Nativa FM, às 5 da matina, com o nome dessa música, onde revela passagens interessantes e toca os maiores sucessos da consagrada carreira do pai. Admirador e conhecedor profundo do Rei, às vezes surpreendem-me algumas canções dele que ouço com mais atenção ou com arranjos diferentes dos originais. Alcançar ou fazer sucesso é relativamente fácil, mas manter-se no topo durante cinco décadas é para poucos. Roberto é um ícone, uma referência. Grande parte dos artistas, independentemente de estilo ou idade, admite influências dele. Caso algum produtor resolva, será possível lançar uma caixa com mais de cem gravações de suas músicas feitas por outros artistas. Além das baladas românticas, importante registrar, também, a qualidade das músicas escritas apenas pelo Erasmo, onde a influência do rock clássico é latente, aliás o Tremendão está super em forma. Há um mês atrás, assisti à uma apresentação dele com uma banda incrível na Fundição Progresso, na Lapa, ao lado do Maurinho, meu amigo de fé e irmão camarada. E tem mais, o rei sabe o que faz, por mais que o critiquem, ele já disse: ‘não vou mudar, esse caso não tem solução.’ Afinal: são muitas emoções!!!


ESSA MULHER – Joyce – Ana Terra

Conheço inúmeras e fantásticas canções na mpb em homenagem às mulheres mas, para mim,‘Essa mulher’ é a número 1. Lançada de forma inédita no excelente lp ‘Elis, essa mulher’, de 1979, foi gravada pela autora Joyce no ano seguinte, no disco ‘Feminina’. São duas gravações excepcionais, a primeira mais densa, emocional, com o piano fender de César Camargo e a orquestra brincando com a voz de Elis na segunda parte. Mais técnica e purista, a versão de Joyce é igualmente linda, pois ela faz um contracanto na linha de guitarra base em cima da proposta de voz e violão na abertura da música que é muito sutil, depois a música cresce com o arranjo de cordas. A letra de Ana Terra é um poema, um passeio pela complexidade que é a cabeça de uma mulher dona de casa e dona do mundo, simples e sofisticada ao mesmo tempo e que ‘acha tudo natural’.


ESTÁCIO HOLLY ESTÁCIO – Luiz Melodia

O nome desse artista já diz tudo! Gosto muito do estilo-Melodia de compor. Entendo que ele criou uma grife muito própria e autêntica de escrever canções, nada parecida com qualquer outra escola ou tendência. Exemplo disso é a canção ‘Ébano’, que o projetou nacionalmente, no Festival Abertura da Rede Globo, em 1973, mesmo ano em que lançou o lp ‘Pérola Negra’, aliás, uma beleza de nome para um disco. Destaco, ainda, ‘Fadas’, em parceria com Renato Piau e ‘Magrelinha’, que misturam influências de samba, jazz, mpb, maxixe e estilos regionais ricos e interessantes. Luiz Melodia rompeu as fronteiras do morro de São Carlos, onde nasceu, e se tornou um artista-cidadão do mundo, pela forma de cantar, de compor e se comportar. 'Estácio Holly Estácio' é de uma elegância espetacular, sutileza na harmonia e letra, uma homenagem às suas origens e uma vestimenta moderna ao samba carioca. Sempre muito bem acompanhado de ótimos músicos, no começo da carreira, Melodia morou um tempo em Brasília, onde se apresentava em casas noturnas, como o Odara, bar muito legal onde tive a oportunidade de ouvir “muita gente boa que pôs o pé na profissão de tocar um instrumento e de cantar, não se importando se quem pagou quis ouvir, foi assim”.


O MUNDO É UM MOINHO – Cartola

Quanto mais ouço as músicas de Cartola, mais fico impressionado como pode um senhor que, aos 66 anos, gravou o primeiro de seus quatro discos e, tendo concluído apenas o estudo primário, escrevia letras rebuscadas com tamanha sofisticação e estilo. Isso é próprio dos grandes compositores, sobretudo os que escrevem samba de enredo a partir de determinado tema histórico ou em homenagem a alguma personalidade. ‘As rosas não falam’, ‘Acontece’, ‘Basta de clamares inocência’ e ‘O Sol nascerá’ também figuram entre as grandes composições populares de todos os tempos. Não vou abordar as supostas linhas de explicação para quem ou em que condições essa música teria sido escrita, pois ela é tão extraordinária melodicamente que supera qualquer vertente analítica e, insisto, desnecessária. Gosto muito das versões de Beth Carvalho, clássica e a de Cazuza, captada em seu último cd, emocionado e delirando de febre. Seu Agenor ganhou o apelido de Cartola pelo chapéu que usava para se proteger do cimento, quando pedreiro, entre tantas outras profissões que teve. Sérgio Porto o descobriu e o revelou em 1956, quando era lavador de carros em Ipanema, sempre simpático e alegre. Na gravação original de Cartola para essa obra, a primeira parte é cantada à capella, apenas com um violão guia bem ao fundo e dá pra ouvir os sons que vazam quando ele se mexe, respira e arranha a garganta. Que sensibilidade do produtor ao manter essa tomada original, sem edição ou cortes, pois o regional entra na segunda parte e proporciona um clima de pureza e elegância.


SAMPA – Caetano Veloso

Caetano é um artista extraordinário e sua obra se destaca pela complexidade temática, pela extensão em estilos e pela audácia nas abordagens estéticas de sua música. Coerente com a proposta a que se submeteu de não fazer concessões, transitou com competência pelos festivais, misturou baião com bossa nova, criou a tropicália e manteve o frescor de sua carreira sempre acompanhado por músicos novos e criativos. ‘Sampa’ é uma declaração de amor à modernidade do concreto, um registro de protesto à fumaça e ao povo oprimido nas ruas, do garoto do interior que se intriga e que descobre o paradoxo do moderno e do rústico. A estranheza de quem encarou frente a frente a cidade e chamou de mal gosto o que viu cai por terra quando cruza a Ipiranga com São João e o coração fala mais alto. São Paulo recebeu justas homenagens de Paulo Vanzolini, Adoniran Barbosa, Eduardo Gudin, Demônios da Garoa e Ultraje a Rigor, mas ‘Sampa’ é um capítulo à parte na história musical da cena paulistana.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

ACHADOS E PERDIDOS

A coisa funciona mais ou menos assim: uma campainha do sensor imaginário denuncia nossa presença na sala que, por ter um enorme espelho ao fundo, passa a impressão de ser maior do que realmente é. A cabeça gira vagarosamente e o olhar sai varrendo um monte de objetos estranhos, uma parafernália de coisas que nunca usamos, superficialidades feitas de plástico, isopor ou madeira de baixa qualidade, pequenas engenhocas mal acabadas para passar o tempo e desafiar-nos a imaginação. Acabamos de entrar num ambiente sagrado, complexo, desconfortável: é o achados e perdidos de nós mesmos. O que será que deixaram para trás e restou impregnado em nós? Como identificar essas criaturas esquisitas que esqueceram tantas coisas dentro da gente e não se importaram em vir buscar? Também há muitos itens que levaram e eram importantes para nós, mas se esqueceram de devolver, pedaços que nos foram tirados sem o nosso consentimento e, não raro, sem o nosso conhecimento e damos como perdidos. Paradoxal constatar que ficamos anos sem sentir falta dessas partes que nos foram tiradas no meio da madrugada, às sete da noite durante o jantar ou no alto da montanha de neve, antes que a aula experimental de esqui terminasse. Muitas foram arrancadas de forma abrupta, sem preliminares, sem anestésicos ou considerações plausíveis e são responsáveis pelos nossos desequilíbrios emocionais e frustrações sentimentais. Na construção desse lego colorido, divertido e curioso que é a nossa personalidade e que define nossos destinos, certamente essas peças fizeram falta, o quebra cabeças nunca ficou completo. Há coisas com as quais convivemos diariamente, tentamos catalogar para manter um mínimo de organização, mas já não sabemos a quem pertencem, se nos foram dadas ou se as tiramos à força de alguém. Carregamos algumas tralhas e até sabemos quem são os donos, mas nos recusamos a devolver ou reembolsar algum valor equivalente, mesmo que seja para desencargo de consciência. Alguns pertences foram levados ainda na caixa, com o código de barras, nome, telefone, rg e cep, ainda sem uso, nem deu para notar que eram importantes e que nos fariam falta. Embora egoísta, o lado positivo disso tudo é que passamos a usar ou nos adaptamos a itens ou estruturas sólidas que mudarão nossos comportamentos e nos transformarão em pessoas do bem. De certa forma, nossa ética quer acreditar que os fins justificam os meios. A partir de uma coisa que não nos pertencia, que nunca compraríamos e que certamente fará falta a alguém, realizamos nossas trajetórias de sucesso, corrigimos rotas, ajustamos componentes psicológicos inerentes ao nosso mundo e aos nossos interesses. Dito e escrito assim, parece confuso e pomposo, mas trata-se de apropriação indébita de qualidades alheias. Nessa brincadeira maquiavélica, intencionalmente ou não, são levadas confiança, autoestima, generosidade, amorosidade e alegria. E, mundo cruel, para compensar o que nos foi tirado, pegamos de outras pessoas em situações diversas e a trama emocional se perpetua de forma engenhosa, feito teia de aranha, feito formigas construindo seus complexos labirintos subterrâneos, feito abelhas produzindo seus favos de mel em coletividade, com hierarquia, método, engenho e arte. O melhor a fazer? Chorar sob um cobertor? Tirar os sapatos e caminhar sobre brasas? Rir de si mesmo e mergulhar no lago gelado de águas passadas? Nada disso. Simplesmente apague a luz desse quarto de achados e perdidos, tranque a porta a sete chaves, uma para cada dia da semana que virá.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

PERGUNTAS QUE NÃO QUEREM CALAR

O que vale realmente no mundo são as perguntas, não as respostas. Mas crescemos ouvindo que precisamos encontrar saídas, ter respostas, buscar explicações e soluções para tudo, para todos, para todos os problemas. Professores saudosos preparavam suas aulas, na maior boa vontade, carinhosa e cuidadosamente, sempre no intuito de ajudar-nos a encontrar respostas. Sou-lhes grato por tudo, mas lamento dizer: isso não importava e não importa. Tenho melhores lembranças dos poucos que me ajudaram a formular perguntas, a questionar. Perguntas abrem cabeças, respostas relaxam, perguntas provocam, respostas congelam, perguntas são adrenalina, respostas são naftalina, perguntas são taças de sorvete de pistache no meio da tarde, respostas são canecas de chocolate quente antes de dormir. Ao perguntarmos, ainda que involuntariamente, estamos questionando, enfrentando, encarando. Ao respondermos, estamos definindo, delimitando, enquadrando. A pergunta incomoda, a resposta acomoda, a pergunta insiste, a resposta decide, a pergunta revoluciona, a resposta rotula. A resposta precisa da pergunta, não existe sem ela. A pergunta tem vida própria, ela se basta, abaixa-se, levanta-se e vai embora, não está nem aí, só quer perguntar, não quer saber. Ela acorda com os primeiros raios de sol, veste qualquer roupa legal que encontra, desce as escadas e vai trabalhar, numa boa. A resposta põe despertador, fica duas horas escolhendo e combinando roupas, espera o elevador subir e chega atrasada aos encontros, deixa todos esperando. Meias respostas, respostas prontas, respostas mal criadas, pessoas respondonas, chatos têm respostas para tudo. Neuróticos precisam achar saídas, necessitam preencher relatórios, completar lacunas, responder tudo. Criaturas de um mundo bom e natural, crianças, no afã de tudo descobrir, perguntam o tempo todo. Mal acabamos de raciocinar e elas já mandam outra pergunta. Não estão preocupadas ou concentradas em ouvir e compreender as respostas. Ranzinzas de nossas próprias armadilhas, achamos que elas estão nos testando, nos provocando, mas não é nada disso. Ao perguntar, conversam em voz alta consigo mesmas, brincam de aprender, radiantes com o turbilhão de emoções, de novidades e de curiosidades que entram pelas janelas e portas abertas de suas inocências e de seus descompromissos. Em ambientes de democracia, a liberdade de imprensa e de pensamento questiona e lança discussões, provoca espaços de discernimento, de desconstruções, de refazimentos e dessarmações. Ao ar livre, numa manhã de sábado, a pergunta propõe um tênis de mesa de nossa inteligência e de nossas emoções. Já em espaços e momentos ditatoriais são oferecidas respostas, roteiros e planos sequenciais estabelecidos que não devem ser questionados, racionalizados ou refeitos. Quanto menos perguntas, melhor! Estrategicamente, estudantes, questionadores, lideranças e pensadores são convidados a se retirar dos palcos onde exercem o ofício de lançar perguntas, idéias maquiavélicas de suas comédias divinas, eis que a convivência de questões diversas e descontroladas são desconfortáveis e desestruturantes. Amantes perguntam-se o tempo todo: você me ama? foi bom para você? quer casar comigo? quer ouvir uma coisa? Bocas perguntam, olhos indagam, mãos interrogam e os ouvidos se fecham em respeitoso contemplar de enebriantes momentos mágicos que asfixiam. Corpos que levitam, suores que inundam, batimentos que extrapolam, retinas que se dilatam, tudo pela emoção das perguntas. Beijos calam respostas equivocadas, favorecem os momentos com silêncio e contemplação. De um lado a pergunta entra como fantasia, por outro a resposta sai feito realidade.

domingo, 9 de outubro de 2011

TERCEIRA LISTA – 5 MÚSICAS POPULARES BRASILEIRAS

Amigos leitores, depois de um longo e nem tão tenebroso inverno assim - viva a primavera e viva a tiavera -, estou de volta com minha série de canções favoritas. Vocês se lembram, fiquei de produzir quatro listas e, ao final, os leitores poderão escolher, dentre as vinte músicas, quais serão as três melhores do blog. Abaixo, as dez primeiras concorrentes. Hoje teremos mais cinco. Boa leitura!

ÁGUAS DE MARÇO – Tom Jobim
AS APARÊNCIAS ENGANAM – Tunai - Sérgio Natureza
CHEGA DE SAUDADE – Tom Jobim – Vinícius de Moraes
CHORO BANDIDO – Edu Lobo – Chico Buarque
EU E A BRISA – Johnny Alf
A MOÇA DO SONHO – Edu Lobo - Chico Buarque
CAIS – Milton Nascimento – Ronaldo Bastos
PARA VER AS MENINAS – Paulinho da Viola
QUANDO O AMOR ACONTECE – João Bosco – Abel Silva
ROSA – Pixinguinha – Otávio de Sousa


COMEÇARIA TUDO OUTRA VEZ – Gonzaguinha

Gonzaguinha começou a aparecer no cenário musical no final dos anos sessenta, através dos festivais. Nessa época, juntou-se a Aldir Blanc, Paulo Emílio e Ivan Lins para fundar o MAU-Movimento Artístico Universitário. Produziram um extenso repertório com temática de protesto, que serviu de base para o Programa Som Livre Exportação, da TV Globo. Irônico e agressivo, ficou taxado de ‘cantor rancor’ e ‘poeta maldito’ no meio musical e na mídia. No começo dos anos oitenta, mudou essa imagem com uma série de canções românticas, que foram gravadas pelas principais cantoras, Elis, Simone e Maria Betânia. Apesar de ter morrido muito jovem, aos 45 anos, num acidente de carro, deixou um grande repertório de músicas fortes e dramáticas. ‘Começaria tudo outra vez’ é uma de suas melhores canções e está entre as grandes da mpb. Ele gostava de compor sozinho e fazia questão de trabalhar com músicos excepcionais, que o ajudaram a desenvolver arranjos coletivos e produzir trabalhos muito marcantes.


DEPOIS DOS TEMPORAIS – Ivan Lins – Vitor Martins

Em se tratando de Ivan Lins, não há meio termo: é amado ou odiado com todas as forças. Sinceramente, acho que ele não tem o devido reconhecimento aqui. O trabalho dele no mercado americano é extremamente valorizado, foi gravado por Sarah Vaughan, George Benson e pelo produtor Quince Jones, entre vários outros. Vitor Martins escreveu essa letra forte e maravilhosa quando Ivan estava se separando de Lucinha Lins, sua primeira mulher. As citações de paralelos entre a relação amorosa do casal e as tormentas do mar, sua profundidade, sua beleza, sua calmaria mostram a habilidade do letrista e a intimidade de quem conviveu com eles durante tanto tempo. O arranjo que Gilson Peranzzetta escreveu é magnífico, com as cordas em crescente e o solo de Márcio Montarroyos é um capítulo à parte, ele que foi considerado um dos cinco melhores trompetistas de todos os tempos pela Downbeat.


LIGIA – Tom Jobim

Dentre as inúmeras pérolas que o Tom compôs, escrevendo letra e melodia, essa se destaca. Lígia é uma declaração de amor à mulher, sobretudo à mulher carioca. Ele passeia pelo Rio, falando de costumes, do chopp, da caminhada de Copacabana até o Leblon, tudo dito de forma surpreendente. Ele usa inversões de sentido, cria uma espécie de figura de linguagem que tudo diz às avessas e com fina ironia. Assim, ele canta: ‘eu nunca quis tê-la ao meu lado num fim de semana, num chopp gelado...e quando eu me apaixonei não passou de ilusão, nem seu nome eu guardei”. É um tentar convencer-se de que tudo não aconteceu ou de que não deveria ter acontecido, mas escrito por alguém que dominava as nuances da língua portuguesa, assim como o fazia com as combinações harmônicas. Gosto muito do final, com mais uma figura de comparação e contradição: ‘seus olhos morenos me metem mais medo que um raio de sol’. Há várias gravações desta música, com Chico Buarque, Gal Costa, Elis Regina e muitas instrumentais, dentre elas uma versão com Stan Getz, que gosto muito.


OCEANO – Djavan

Escrita em 1989, essa é uma das melhores canções de Djavan. Ele é uma matriz musical, tem um estilo muito próprio de compor. Criou uma maneira peculiar de produzir músicas românticas com um toque de sofisticação e baladas pop com refinamento harmônico. Escreve letras meio confusas, algumas aparentemente sem nexo, mas as leio como uma literatura revestida de charme especial. Inicialmente, Oceano foi uma tentativa de compor uma música em espanhol, numa levada flamenca, mas ficou engavetada durante um tempo. Por insistência da filha, resgatou a idéia, compôs um belo poema (“assim que o dia amanheceu lá no mar alto da paixão... cadê você, que solidão, esquecera de mim”), num português literalmente mais que perfeito e convidou Paco de Lucia para fazer um solo inesquecível na segunda parte da música, um colorido todo especial e que resgatou a ideia inicial com influência moura.


SOL DE PRIMAVERA – Beto Guedes – Ronaldo Bastos

Essa linda música dá nome ao terceiro disco de Beto Guedes, de 1980. Aliás, os três primeiros discos individuais dele são os melhores de sua carreira: A Página do Relâmpago Elétrico, Amor de Índio e Sol de Primavera. Junto com o pessoal do Clube da Esquina, influenciado pelos Beatles, nessa época ele produziu trabalhos magníficos, lindas harmonias para letras delicadas e profundas. Aqui, Ronaldo Bastos escreveu uma obra de arte e falou por toda uma geração que saía do período de regime militar: ‘já choramos muito, muitos se perderam no caminho, mesmo assim não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera’ e termina com um ‘achado literário’ que é de uma profundidade e sabedoria imensas: ‘a lição sabemos de cor, só nos resta aprender’. O arranjo de Wagner Tiso valorizou demais a canção, numa linha erudita com cordas e flauta transversal que mostram bem a importância que o pianista, maestro e líder do Som Imaginário teve na produção musical dos mineiros.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

DAS MINAS, DO MINÉRIO, DOS MINEIROS

Agora estamos descendo as escadas do pequeno sobrado, em movimento circular que, aos poucos, deixa para trás a claridade vinda dos vitrais de nossa casa. Chegamos à calçada e o frio é intenso. As japonas de lã nos cobrem a parte de cima dos corpos, mas o frio mineral que atravessa nossas calças curtas nos maltrata e desanima. São seis horas da manhã e seguimos nosso trajeto, meu irmão e eu. Estamos a caminho do colégio. Caminhamos em silêncio, passos curtos e rápidos. A estreita calçada nos aproxima e o sopro gelado que sai de nossas bocas, vira fumaça em movimentos divertidos, e isso quebra a dura e cotidiana jornada. Deliciosos aromas de café atravessam as imensas e ainda fechadas janelas de madeira dos casarões. De dentro, saem sussurros, conversas, risadas e raspar de gargantas. O barulho do movimento compassado de vassouras é interrompido para nos dar passagem e nos desejar bom dia. Estamos na parte baixa da cidade de Congonhas do Campo. Caminhamos para o colégio e não podemos nos atrasar. Atravessamos a ponte e iniciamos a longa subida. Nossas pernas curtas enfrentam as ruas íngrimes, pavimentadas com enormes pedras disformes, escorregadias e cheias de vida. Séculos de história e de mistério nos espreitam e nos conduzem. Por ali, cruzaram bispos e beatas em procissão, desfilaram romeiros e rameiras, passaram cruzes esmagando ombros de pecadores e de pescadores de almas. Essas ruas que guardam, em silêncio, conspirações e torturas, promessas e penitências, caminhos de fé e de festa. A subida ritmada e intensa aumenta nossa pulsação e deixa nossos corpos quentes e suados. Agora o frio úmido e a névoa já não castigam nossas pernas descobertas. Nosso regime no seminário é o semi-internato. Longe de ser uma pena, é mais uma comodidade: ficamos o dia todo, lá tudo fazemos e voltamos no início da noite, para dormirmos em casa. Não é bom nem ruim, simplesmente é assim. Depois de longa caminhada, avistamos a Igreja de Bom Jesus de Matosinhos, com os profetas de Aleijadinho, feitos em pedra-sabão, maravilhosas obras de arte admiradas e visitadas por viajantes de todo o mundo, o ano todo: Abdias, Amós, Baruc, Daniel, Ezequiel, Habacuc, Isaías, Jeremias, Joel, Jonas, Naum e Oséias. Ao lado, o Jardim dos Passos, pequenas capelas com estátuas de madeira em tamanho natural, representando os caminhos da morte e ressurreição de Cristo. Simbologia e beleza, arte e encantamento, tudo ao ar livre, ao nosso dispor, diariamente. Tudo é complexo, infinito e ritualístico. A dificuldade da subida, o desafio, a aceitação do cotidiano e o movimento cadenciado, crescente, em transcendência, tudo convida à fé e aos mistérios do mundo. Lá de cima, ao lado da igreja e da casa paroquial, avistamos toda a cidade, incrustada no vale, tudo marrom, tudo minério, tudo riqueza, tudo multinacional, tudo exportação, tudo exploração. Nossos olhares curiosos e inocentes olham mas não veem, veem mas não definem, definem mas não compreendem. Tudo mistério e fé. Agora estamos de volta. Pegando um gancho no poeta gauche: ‘hoje, Congonhas é apenas um retrato na parede, mas já não dói’.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A NOITE EM QUE ADÉLIA ABRIU-ME PORTAS

Quando soube que Adélia Prado leria seus poemas e conversaria com a plateia, não pensei duas vezes. Tomei o rumo do CCBB, sem ingresso, sabedor de que o local estaria lotado. Por costume, fico ali, sentado, quieto, como quem não quer nada, ouvindo a turma descer o malho na dificuldade de se conseguir assistir aos eventos de lá, da falta de organização e coisa e tal. Depois, falantes, saem agrupados, dividindo a raiva que predomina, desativando os alarmes dos carros e já combinando a pizza deles de cada noite. Aí fica mais fácil, contagem regressiva: entre oito a dez minutos após o fechamento da porta do teatro, vem o sujeito da bilheteria distribuindo dez convites extras. Bingo. Quem se deu bem mais uma vez? Eu mesmo, que não sou besta! A ocasião não podia ser mais propícia. Há um mês, publiquei aqui no blog um texto em homenagem aos oitenta anos de papai, chamado ‘Em nome do pai e dos filhos’. Gostei tanto de ter escrito e registrado aquelas palavras, que resolvi deixar-me um espaço para reciclagem espiritual, reordenar detalhes em minha vida e fazer desse vácuo na produção um divisor de águas passadas que moveram e continuam movendo moinhos de minha imaginação. Repito, nada mais propício. Adélia é de Divinópolis, cidade que marcou minha vida. Aos quinze anos, comecei a trabalhar no Banco do Brasil de lá, na primeira contratação de quatro menores aprendizes. Um dos meus chefes era o marido de Adélia, José de Freitas, sujeito simpático e prestativo. Eles se casaram no ano em que nasci, outra feliz coincidência. A inteligência simplificada de Adélia, aliada a uma naturalidade incomum travestida de humor, a todos comove e convida ao desnudar de nossas complicações e desnecessidades. Ela conta passagens de sua vida, desfia um rosário de causos sobre o rigor da religiosidade mineira, do roxo nas roupas, da incorporação do sofrimento obrigatório em nome de tradições incompreensíveis e explica a presença forte dos códigos da fé cristã em sua obra. Em tobogã psicológico, a plateia emudece e ri e concorda com a cabeça e relaxa e se vê representada na fala da poetisa. Uma delícia, a forma como a autora de ‘Dona Doida’ fala dos mineiros e das mineirices, de que o povo de lá, quando não é doido é sistemático, maneira simpática de se referir à neurose barroca impregnada em quem ali foi talhado. Com delicadeza e propriedade, ela fala do afeto, de como a arte, e a literatura em especial, pode não servir para nada, absolutamente nada, se a pessoa não olhar para dentro de si mesma e não enxergar o mote artístico esculpido e impregnado em cada um de nós. Aborda, ainda, chamamento à reflexão, ao entendimento das questões metafísicas inerentes à nossa condição emocional, diante do sofrimento e das complexidades da vida. Dito e visto dessa forma, tudo fica mais belo, mais palatável, mais aceitável, mais humano. Afinal, se uma pessoa como Adélia, culta e simples, interiorana e filósofa, cristã praticante que inclui foda-se em um de seus poemas, ainda sofre e se descabela assim, como não havemos de padecer em nossos infernos dantescos diários, em calvários profundos a que nos metemos por tantos erros, à pregação na cruz pela qual nos vitimamos em nossos paradoxos de modernidade? A emoção paira no ar da aconchegante sala, quando um grupo de escolares do Recanto das Emas sobe ao palco para homenagear a escritora. Declamaram, de cor e salteado, obras da poetisa, estudados e discutidos em sala de aula. Envaidecida e feliz, Adélia manteve em seu colo, até o fim do evento, rosas que recebeu dos alunos fundamentais, termo tão apropriado para definir a presença deles, ali, ao lado dela. Depois, surpresa com o largo conhecimento de sua obra pelos ouvintes, atendeu aos pedidos para que lesse poemas, por eles indicados. Lágrimas traiçoeiras não a deixaram chegar ao final de alguns, outros, delicadamente, declinou-se de ler, pela intensidade dramática contida em suas feituras. Não fiquei para a sessão de autógrafos. A secura do planalto recomendava uma ducha morna, frutas diversas e uma taça de tinto, que chega ao final, assim como este texto. Fica o registro prático literário, produto das portas extraordinárias que, oportunamente, foram-me abertas por Adélia. Coincidência feliz, Adélia é o mesmo nome da bisavó materna dos meus filhos, pessoa que respeito, admiro e lamento não ter convivido mais. Agora, resta-me deitar, descansar e, com sorte, meu anjo protetor virá me beijar e me fazer dormir.

sábado, 13 de agosto de 2011

EM NOME DO PAI E DOS FILHOS

Pai, que felicidade acompanhar a chegada de seus oitenta anos e ver como o senhor cuidou tão bem do seu corpo e de sua cabeça, como respeitou as mudanças naturais da vida e como tem aproveitado, sabiamente, tudo o que se apresenta, de forma equilibrada e saudável. Não bastasse isso, encanta-me constatar como tem cuidado tão bem de todos nós. Tenho pensado em tantos momentos felizes que já passamos, das bagunças e risadas em nossas viagens, da riqueza e criatividade dos improvisos, das chegadas e partidas por tantas cidades, tudo sempre foi tão único, tão profundo e tão verdadeiro.

Quando as dificuldades apareciam e tudo ensaiava ruir, acostumamos a nos recolher, compreender, aceitar, levantar a cabeça, buscar as boas novas, recomeçar, valorizar e aproveitar cada oportunidade para evoluir e transcender. Esse crescer tão diferente e tão cheio de situações inesperadas nos lapidou e nos preparou para as coisas da vida, pois a vida é arte da mudança, é adaptação, é o pão novo de cada dia. Assim, quando mamãe precisou visitar outros planos, o senhor foi pai, foi mãe, foi amigo, foi honesto ao dizer que não sabia exatamente o que iria acontecer, foi atencioso, foi sincero, foi presente, tornou-se o espelho nosso do que produzimos e o reflexo de tudo isso aqui está, aqui estamos, aqui estaremos, juntos e felizes.

A escola da vida lhe forjou na arte da solidariedade, da educação, da gentileza, da humildade, ensinou-lhe a abrir mão de muitas coisas aparentemente boas e fáceis em prol de oportunidades para os que estavam à sua volta, de interromper seus estudos pelas dificuldades financeiras e o senhor foi aluno e diretor de sua própria escola, criou lógica, equações e métodos pessoais, reinventou-se e, mesmo quando muitos diziam não, o senhor foi sábio e coerente ao respeitar suas intuições, seu código próprio de conduta, virou-se nos trinta, ou melhor, continua virando-se muito bem nos oitenta.

Recordo-me, também, de algumas passagens que compramos para viagens equivocadas, canoas furadas, estradas sem saída, mas o senhor estava sempre lá, maquinista a nos esperar nas estações do mundo com braços e sorrisos abertos, farol a iluminar os caminhos de nossas embarcações, cais e porto seguro de nossos destinos, respeitando nossas curiosidades e necessidades de aventuras e descobertas, tudo de forma razoável, sem cobranças exageradas, sem discursos teóricos incoerentes, simplesmente oferecendo-nos carinho, atenção e exemplos positivos.

Fico imaginando como, às vezes, deve ser difícil ver e aceitar tanta mediocridade, ostentação, falta de ética, um deslumbre de superficialidades e atitudes que são diametralmente opostas à sua personalidade, às coisas que acredita e que valoriza. Tenho guardado os valores que o senhor sempre nos passou de serenidade, dignidade, atenção e respeito ao próximo, às crianças, idosos e animais. Recorro ao poeta Vinícius de Moraes para fechar esse registro em forma de homenagem: existiria verdade, verdade que ninguém vê, se todos fossem no mundo iguais a você! Em nome dos irmãos e de toda a família, obrigado por tudo, desejamos-lhe muitos anos de saúde, paz, alegria e que Deus o proteja. Amamos você!

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

SEGUNDA LISTA – 5 MÚSICAS POPULARES BRASILEIRAS

Já que deu ibope e como amante da democrática MPB, matarei dois coelhos com uma caixa d’água só: incluirei as músicas pedidas pelo Carlão batera, meu guru para assuntos de mpb, do Maurinho cordas de aço (está fazendo falta nos ensaios) e aceitarei a sugestão do prezado Renatão, líder da super banda ‘Cadillac Mineiro’, a mais famosa desse lado do Mississipi. Com isso, farei mais três listas de canções favoritas e, ao final, os leitores poderão votar dentre as vinte concorrentes e eleger as três melhores músicas do blog, estamos combinados? Só peço um pouco de paciência, afinal, com tantos músicos, artistas e leitores entendidos, a responsabilidade é grande e agora aumentaram as oitavas, mas tentarei contemplar representantes dos diversos segmentos da mpb contemporânea. Então, vamos lá e, como diria o sumido ‘manuvéio’, toca o boréu!!!


A MOÇA DO SONHO – Edu lobo - Chico Buarque

Para mim, nos quesitos qualidade e excelência musical, há três vertentes que se destacam: Estados Unidos com o jazz, Cuba com a salsa e Brasil com a mpb. Que letrista teria a coragem e bagagem para começar uma música com a frase: ‘Súbito me encantou a moça em contraluz’? Essa canção é uma viagem, deve ser ouvida em reflexivo silêncio e quando se está em paz, de preferência com uma taça de tinto seco. A melodia é rica, tranquila e equilibrada: muito prazer, sou Edu Lobo, ele diria! Recomendo a versão feita ao vivo no Mistura Fina, para o dvd VENTO BRAVO, com Cristóvão Bastos ao piano, Jorge Helder no contrabaixo e Rafael Barata na bateria. Fico imaginando essa música interpretada pela pianista Diana Krall, de certo seria um sucesso mundial. Mais uma taça de tinto e bons sonhos!


CAIS – Milton Nascimento – Ronaldo Bastos

Como bom mineiro, costumo dizer que existem três tipos de música: a ruim, a boa e a do Clube da Esquina! Milton e sua trupe criaram um estilo de fazer e tocar um determinado tipo de canção, cuja sonoridade mistura mpb, jazz e latinidade, que cresceu e ganhou notoriedade internacional, a ponto dos críticos americanos criarem uma modalidade para premiar essas criações: world music. CAIS é do lp Clube da Esquina 1, álbum duplo lançado em 1972, obra rara com uma série de preciosidades de Milton, Ronaldo Bastos, Fernando Brant, Lô e Márcio Borges. Essa primeira fase deles é a que mais gosto, meio experimental, criações em grupo feitas até dentro do estúdio e a voz do Bituca, linda e límpida como um diamante fino a penetrar e conduzir nossas emoções pelas esquinas do mundo. A letra de Ronaldo Bastos é misteriosa, criativa e o arranjo do maestro Wagner Tiso conduz a música num clima barroco bastante especial.


PARA VER AS MENINAS – Paulinho da Viola

Samba é um dos estilos mais ricos e marcantes da mpb, mas sou meio radical quanto ao que se produz atualmente nessa área. Respeito e admiro os sambas feitos até a entrada em cena de Paulinho da Viola. Depois dele a coisa degringolou ladeira abaixo. Ele tem inúmeros clássicos, é um mestre e fabrica seus próprios instrumentos. PARA VER AS MENINAS é uma pérola, melodia e letra perfeitas. A sensibilidade, segurança e tranquilidade de Paulinho o colocam num lugar muito especial no cenário cultural brasileiro. Gosto muito da interpretação de Marisa Monte, com o cavaquinho sutil de Mauro Diniz, filho de Monarco da Portela, dando cadência, estilo e classe às pausas contidas nesse samba.


QUANDO O AMOR ACONTECE – João Bosco – Abel Silva

João Bosco é uma matriz. Ele é único, criou o seu próprio estilo de cantar e tocar violão. Esteja sozinho ou com uma grande banda, sua batida produz uma usina de sons que vão do flamenco aos tambores africanos, do choro ao fado, do samba canção às texturas eruditas. Tem uma extensa folha de serviços prestados à mpb, musicando obras de excelentes letristas que se tornaram clássicos, sobretudo na primeira fase, com Aldir Blanc. Essa canção é muito marcante, Abel Silva escreveu um texto lindo falando de amor e que emociona pela forma como João utiliza a onomatopéia dos artifícios vocais em sintonia com a dinâmica crescente do arranjo orquestrado.


ROSA – Pixinguinha – Otávio de Sousa

Essa pérola é um clássico da música popular brasileira, composta em 1917 e imortalizada através de gravações extraordinárias do seresteiro Silvio Caldas e de Orlando Silva, ‘o cantor das multidões’. Gosto muito, também, da gravação de Marisa Monte no disco MAIS, de 1998, delicada e sutil, com arranjo minimalista executado pelo tecladista japonês Ruyichi Sakamoto. Ficou elegante e moderna, mas manteve o rigor da melodia e o andamento original de valsa. A letra é um tratado perfeito de como se deve, formalmente, elogiar uma mulher, deixando-a envaidecida e, literalmente, nas nuvens.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

CINCO MÚSICAS POPULARES BRASILEIRAS

Produzir uma relação de cinco músicas populares brasileiras letradas é muito difícil. Para cada uma escolhida outras mais se apresentam e começam a nos torturar e a nos lembrar os momentos de nossas vidas em que elas aconteceram e nos marcaram. Muito mais que notas e acordes embalando palavras e poemas, música é tudo aquilo que nos alegrou, nos massacrou, nos acompanhou, nos fez crescer e transcender. Fiquem os leitores à vontade para discordar e sugerir outras de suas preferências e, estejam certos, caso eu decida refazer essa relação, outras cinco canções diferentes serão escolhidas, tamanha é a quantidade de obras primas que compõem nossa música popular brasileira. Elas estão em ordem alfabética e não há destaque ou preferência. Essas músicas me conhecem!


ÁGUAS DE MARÇO – Tom Jobim

O conjunto da obra jobiniana é extremamente rico, criativo e particular, sobretudo em texturas harmônicas e pela capacidade de produzir melodias simples e geniais. Fazer o simples com qualidade é muito difícil, tarefa para poucos. Aqui, Tom usa uma letra cadenciada que trata do meio ambiente para falar do cotidiano com muita sabedoria e propriedade, tudo conduzido por uma linha melódica em moto contínuo, que envolve o ouvinte numa trama rítmica incomum, causando estranheza e conforto ao mesmo tempo.


AS APARÊNCIAS ENGANAM – Tunai - Sérgio Natureza

Última música, lado B, do LP ‘Essa Mulher’, de Elis Regina, gravado em 1979. A letra é uma pérola e faz um paralelo entre mudanças de estações e fases dos relacionamentos amorosos, inverno e verão, amor e ódio. Para mim é a melhor música de Tunai. Ele escreveu uma melodia complexa e elegante, que vai permeando harmonicamente a letra, com sensibilidade e criatividade. O arranjo de Camargo Mariano brinda e veste a voz de sua mulher, num momento difícil de suas vidas, em que se iniciavam os desacordes e desacordos da separação.


CHEGA DE SAUDADE – Tom Jobim – Vinícius de Moraes

Emblemática, essa música é considerada por muitos como um marco, o início da bossa nova. Gravada pela primeira vez por Elizeth Cardoso no LP ‘Canção do Amor Demais’, de 1958, imortalizou-se na voz de João Gilberto. Começa em tom menor falando de saudade e tristeza, mas quando o poeta muda o clima da letra na segunda parte e aborda esperança e alegria, Jobim altera a melodia para tom maior, mudança sutil que evidencia a genialidade da dupla.


CHORO BANDIDO – Edu Lobo – Chico Buarque

Chico tem habilidade literária e concisão estética para contar uma estória complexa e torná-la popular numa letra de música. Edu Lobo criou um estilo de tocar violão e compor melodias sofisticadas e agradáveis. Depois do samba canção, jovem guarda e tropicália, ele mescla a base harmônica da bossa nova a influências rítmicas pernambucanas e letras com temática social para iniciar um estilo que viria a se chamar música popular brasileira. A sinergia na união dessa dupla de gênios já produziu músicas memoráveis, mas classifico ‘Choro Bandido’ como o melhor trabalho deles até aqui.


EU E A BRISA – Johnny Alf

Essa obra prima é um clássico e foi composta em 1965 por Johnny Alf, codinome de Alfredo José da Silva, músico, letrista e compositor excepcional, que criou um estilo vanguardista de cantar e tocar piano, influenciou muita gente e nunca teve o devido reconhecimento, nem do público nem da mídia. Morreu pobre e esquecido aos 80 anos e não deixou discípulo à altura que dê sequência à sua escola melódica esteticamente perfeita e criativa. De sofisticada linha harmônica, é daquelas músicas únicas, que não se parecem com nada que se tenha ouvido.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

AMY, A CANTORA QUE NÃO CONHECEREMOS

As manchetes se repetiram à exaustão: Amy Winehouse é encontrada morta por overdose em sua casa, o que já era esperado pela imprensa e fãs. A prematura saída de cena da cantora britânica adiciona-se à estatística de outros artistas excêntricos, também vitimados pelas drogas aos vinte e sete anos: Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Brian Jones e Kurt Cobain. Os poucos shows e imagens disponíveis na curta carreira mostram-na, invariavelmente, bebendo e colocando o copo no chão em pleno palco, tropeçando nos fios, equilibrando-se no pedestal do microfone, esquecendo as letras ou criando confusões em tribunais e hotéis. Meu lado conservador pensa que é um absurdo inaceitável uma personalidade, de qualquer segmento, apresentar-se em público sem o mínimo de condições físicas, mentais ou psicológicas. Isso é falta de respeito para com a platéia, seja o evento pago ou gratuito, e depõe negativamente contra a pessoa em foco. Amy precisava de ajuda constante, não tinha condições de ficar sozinha e só deveria voltar a se apresentar quando estivesse física e emocionalmente equilibrada. Maior de idade, rica e famosa, recusou a intervenção do pai, que tentou várias vezes interná-la para reabilitação, mas ela disse e escreveu: no, no, no! É uma pena! Eu admirava muito o potencial de sua voz, seu estilo de cantar, sua irreverência estética trash e sua sinceridade em admitir e explorar questões pessoais nas letras que escrevia. Harmonicamente, suas canções eram simples, mas extremamente criativas já que, baseadas em informações e características jazzísticas, eram uma releitura do rhythm and blues, música negra americana que exige balanço, invenção rítmica, andamentos quebrados e voz rouca, elementos musicais típicos dos artistas da Motown Records nos anos setenta e incompatíveis com uma cantora inglesa, branca, pequena e de aparência frágil. Por isso, eu evitava as imagens depreciativas mostradas nos dvds ou clips e optava por degustar seu imenso potencial vocálico imaginando-a negra, ao ouvir seus dois únicos cds, Frank (2003), ótimo como primeiro trabalho e Back to Black (2006), uma obra prima que recebeu cinco grammies. Hábito que cultivo com frequência, prefiro analisar e apreciar cantores e cantoras em cds, pois, em se tratando de música, o som da palavra vale mais que mil imagens. Fico imaginando o que seria de sua voz e de sua carreira caso ela conseguisse se livrar dos efeitos do álcool e das drogas! Se, em curto espaço de tempo e com as cordas vocálicas tão agredidas ela produziu um excelente trabalho, ouso inferir que ela se tornaria a melhor cantora viva desta primeira metade do século. Alguns críticos citam Janelle Monáe, Dionne Bromfield e Adele como suas sucessoras. Sinceramente, pelo que produziram até aqui, acho que nenhuma delas chega perto do talento de Amy. Tive a oportunidade de ver e ouvir Etta James no House of Blues de Los Angeles, a dez metros de distância, essa sim, uma cantora extraordinária e que ainda se apresenta aos setenta e três anos, mas que também teve sua carreira e performance comprometidas pelas drogas. Para compensar o vácuo musical que Amy deixou, vazaram informações de que há registro de material inédito que ela teria gravado e que renderiam três ou quatro cds. Ótima notícia, diante de tanta mediocridade que tem sido lançada, sobretudo vinda do mercado norte-americano e travestida sob o rótulo de música pop. Minha música favorita dela é 'Love is a losing game'.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

BOLETIM DE OCORRÊNCIA NADA CONVENCIONAL

De acordo com o relato das testemunhas arroladas neste documento, o casal de namorados chegou ao restaurante do hotel e foi conduzido à mesa reservada para comemoração dos seis meses de intensa relação amorosa; disseram que escolheram vinho tinto da região de bordeaux safra 2004, água san pellegrino, escargots gratinados à provençal e torradas com manteiga de ervas como entrada; que brindaram e começaram a rememorar o dia em que se conheceram naquela agradável tarde de outono na capital parisiense; que, devido ao efeito do vinho, sucedeu-lhes descontrolado tesão(sic) e que os mesmos começaram a se beijar, inicialmente de forma discreta e romântica, mas que o desejo foi-lhes tomando o juízo, de forma que os beijos iniciais deram lugar a amassos(sic), mãos desgovernadas que percorriam-lhes os corpos mutuamente; que, a despeito das discretas solicitações do maître para que evitassem inusitada cena que causava burburinhos e frisson(sic) nos demais clientes, o casal se instalou debaixo da mesa, enquanto peças de suas roupas eram arremessadas ao léu, inclusive soutien de renda na cor prateada que causou a queda do suporte metálico utilizado pelo garçom para manusear o maçarico enquanto preparava o crème brûlée na mesa ao lado; que a faísca do citado equipamento atingiu a toalha branca de linho, o que teria ocasionado um pequeno incêndio, causando tumulto e histeria generalizada nos comensais; que, nada obstante os diversos baldes de gelo utilizados para debelar as chamas e que inundaram o tapete, o jovem casal permanecia debaixo da mesa dando prosseguimento à jornada sexual a que se submeteram, diante dos olhares atônitos e incrédulos da pequena multidão que se pusera a observar a inusitada e grotesca cena. Fato seguinte, o casal relatou que deixou o tumultuado local por falta de condições mínimas de concentração e dirigiu-se ao hall do hotel com a intenção de dar prosseguimento à saga amorosa em suíte previamente reservada na cobertura, com hidromassagem e vista panorâmica da cidade; que adentraram o elevador e que a porta do mesmo ficou emperrada tendo em vista que parte do vestido da depoente, na cor branca, ficou preso na porta e que, pressentindo a situação de perigo que se anunciava quando o elevador começou a mover-se, o cavalheiro retirou um pé de sapato na cor preta e o colocou no canto inferior esquerdo da porta, enquanto puxava o tecido do vestido e apertava aleatoriamente vários botões no console digitalizado do equipamento; que o elevador travou a tempo de acontecer uma tragédia, mas que a mulher ficara numa posição extremamente desconfortável, considerando que ainda não fora possível soltar o vestido acima descrito; que o sistema de alarme disparara emitindo som extremamente alto e que tornava inaudível a tentativa de comunicação feita através de aparelho celular; que, após quinze minutos aproximadamente, conseguiu finalmente remover o tecido e o pé de sapato, o que liberou o fechamento da porta, mas que ocasionou movimento abrupto do elevador, e que este percorreu doze andares em queda livre, deixando os ocupantes bastante tensos e preocupados, assim como a equipe de emergência, que adotou providências de isolamento de curiosos que se dirigiam ao local, mas que o corpo técnico a tudo assistia sem condições de atuação positiva no sentido de solução do problema; que, finalmente, o elevador efetuou parada na altura da sobreloja, evitando, com isso, a colisão do mesmo com o chão; que a perícia efetuada em seguida não encontrou motivação técnica plausível para o estacionamento relativamente suave do elevador e que caberiam duas linhas de explicação para o ocorrido: extrema sorte dos ocupantes e/ou ação de evento sobrenatural que culminou com o encerramento do caso sem vítimas ou maior gravidade. Nada mais tendo a declarar, o casal e testemunhas foram liberados, levando consigo cópia deste boletim de ocorrência.

terça-feira, 12 de julho de 2011

GILBERTO GIL + ZÉLIA DUNCAN = VERSATILIDADE

Gilberto Passos Gil Moreira, baiano, 69 anos e Zélia Cristina Duncan Gonçalves Moreira, carioca, 47 anos. Além do último sobrenome, o que teriam em comum esses dois artistas brasileiros? Ok, são cantores, músicos e compositores. Muito mais que isso, no que se refere a talento, eles representam o que há de mais versátil, completo e moderno na música contemporânea brasileira e, de certa forma, universal, pois ambos cantam também em inglês e suas performances cênicas não têm fronteiras estéticas. Verdadeiros curingas, eles conseguem se sair extremamente bem em shows ao ar livre, em espaços fechados - salas intimistas ou grandes teatros – em entrevistas e programas de televisão, em cds e dvds gravados em estúdios ou direto dos shows, ou seja, mídias e espaços distintos. Eles jogam nas onze. Em se considerando as várias categorias que envolvem o trabalho artístico musical, acho difícil encontrar nomes alternativos que sejam tão competentes e versáteis quanto eles. A seguir, de forma separada, um pouco do que penso sobre cada um desses artistas.

Gil declara influências marcantes de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e João Gilberto. Autodidata, utilizou essa mistura antagônica de valores e criou uma matriz musical que não tem fronteiras ou preconceitos. Nela tudo cabe em dinâmica e criatividade. Daí vieram mesclagens culturais em suas relações com artistas do mundo do reggae, do pop, ícones da bossa nova, sambistas, gente do funk e nos ritmos baianos, como o afoxé. Criou a Tropicália, movimento musical e cultural importante e produziu, em sequência, trilogia de lps fantásticos: Refazenda (75-rural), Refavela (77-urbano) e Realce (79-mundial). Gravou 57 álbuns e ganhou 8 grammys, entre milhares de participações em trabalhos de outros artistas, festivais internacionais e trilhas para cinema. Perfeccionista e talentoso, consegue fazer um cd de puro rock e deixar os punks e metaleiros de plantão impressionados. O mesmo desempenho se aplica para forrós ou sambas tradicionais, harmonias bossanovistas ou em músicas intimistas melodicamente ricas que retratam seu mundo e suas relações pessoais. Como letrista, destaca-se em seu trabalho a preocupação com temas sociais, humanistas e ambientais, frutos de sua origem interiorana e suas raízes africanas. A exemplo dos grandes vinhos tintos, Gil tem uma energia que se mostra cada vez mais consistente e surpreendente.

Zélia nasceu em Niterói, mas dos seis aos dezesseis anos morou em Brasília, onde virou cantora e desenvolveu estilo próprio em performances nas noites da capital. Lembro-me de vê-la se apresentando no Amigos e Bar Bom Demais, espaços alternativos daqueles anos oitenta. Na época, impressionou-me a rara textura de timbre médio que hoje flutua seguro em extenso registro vocálico e que lhe dá suporte para ótimos e variados desempenhos musicais. Ela é uma artista completa. Musicalmente, de forma simultânea, consegue ser novidade e vanguarda, clássica e conservadora. Em 2001 lançou o seu melhor cd, Sortimento, ótimo repertório com algumas parcerias inéditas e regravações consistentes. Sua carreira se divide antes e depois dessa produção, que mostra sua versatilidade e lhe proporciona uma espécie de blindagem contra rótulos ou segmentação de estilo. Em curto espaço de tempo gravou outra obra prima com releituras de obras consagradas da mpb - Eu me transformo em outras-2004 -, e substituiu ninguém menos que Rita Lee nos concertos que marcaram a volta dos Mutantes em Londres, Estados Unidos e Brasil, em 2006 e 07. A exemplo de Gil, ela canta samba, reggae, rock e música brasileira, com competência e originalidade. Tem condições de produzir um cd só de blues, de jazz ou de choro com a mesma propriedade, o que lhe abre portas para uma carreira internacional de sucesso que, espero, aconteça brevemente.